O laboratório de cada povo
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Brasileiros e outros povos denunciam a si mesmos por meio das mais singelas amostras de seus idiomas |
Jean Lauand
Uma das grandes contribuições do pensador alemão Josef Pieper (1904-1997) para o método da Antropologia Filosófica foi a de evidenciar que nosso acesso ao ser do homem é fundamentalmente indireto: os grandes insights que temos sobre o mundo e o homem não permanecem na consciência reflexiva, logo se desvanecem, se transformam, acabam por se esconder em três grandes sítios: instituições, formas de agir e linguagem (um estudo tematicamente dedicado à metodologia em Pieper está em Filosofia, Linguagem, Arte e Educação, de Lauand, publicado pela EDSC, 2007: 119-142). Esses grandes insights estão portanto ativos, mas ocultos: em grandes instituições (como, por exemplo, a universidade, que tanto nos revela sobre o espírito humano), em formas de agir (como é o caso do filosofar ou do ato poético), e na linguagem, a linguagem comum: essa que falamos e ouvimos todos os dias. Logo, se quisermos recuperar filosoficamente aqueles insights sobre o homem, devemos procurar atingi-los em seu novo estado: como princípios ativos ocultos das instituições, das atividades humanas e das formas de dizer, em nossa língua ou em outras.
Nesse quadro, a linguagem passa a ser todo um laboratório para o pesquisador em antropologia: é por trás de fatos da linguagem que se escondem preciosas informações filosóficas - e também sociológicas, históricas etc. Casos reveladores Nestas páginas indicaremos - por vezes a modo de brevíssima alusão - alguns desses casos "reveladores" da linguagem, em diversas línguas. Feitas as devidas imensas ressalvas, falaremos aqui de grandes tipificações como "o brasileiro", "o inglês" etc. Como não pretendemos mais do que sugerir indicações de presença e de conexão, trata-se de procedimento aceitável, desde que tenhamos sempre presentes as limitações que reconhecemos. Fiquem estes poucos exemplos como sugestão para quem deseja explorar outros fatos gramaticais ou de linguagem em seu cotidiano, dentro e fora de uma sala de aula: numa época que diz valorizar a interdisciplinaridade e a transversalidade, não estaria demais ensinar gramática e língua procurando descobrir concretamente aquilo que de fato são: reveladoras do homem e de seus condicionantes. Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP. jeanlaua@usp.br Gênio (e jeito) das línguas | A linguagem recebe (e dá...) características do povo que a pratica; o falar brasileiro - o de Sinhá Zefa e o nosso - dá-se acompanhado - no léxico, na prosódia etc. - pelo africano e pelo índio, porque também o brasileiro recebeu essas influências. Para evidenciar isto, baste evocar a figura e a obra do saudoso Dorival Caymmi - ele mesmo um expoente do diferencial brasileiro - e os personagens de suas brasileiríssimas canções, como História pro Sinhôzinho: Na hora em que o sol se esconde E o sono chega O sinhozinho vai procurar Hum, hum, hum A velha de colo quente Que canta quadras e conta histórias Para ninar Hum, hum, hum Sinhá Zefa que conta história Sinhá Zefa sabe agradar Sinhá Zefa que quando nina Acaba por cochilar Sinhá Zefa vai murmurando Histórias para ninar Peixe é esse meu filho, peixe é esse meu filho Não meu pai Peixe é esse mutum, manganem É toca do mato guenem, guenem Suê filho ê Toca aê marimbaê Em maior ou menor grau, aprendemos com Sinhás Zefas, que falavam brasileiro, com palavras tupi e bantu (como "cochilar" ou "marimba") e ensinavam os fundamentos do jeito nosso de ver o mundo... Para ficarmos com alguns exemplos, fomos educados a atenuar tudo com diminutivos; assim, alguns dos enormes espetos do rodízio de carnes são diminutivos de carteirinha, como "maminha" e "fraldinha"; e muitos outros viram diminutivo ao serem oferecidos, "coraçãozinho" e "franguinho", acompanhados talvez de uma "caipirinha", que sempre dá uma animadinha para manter aquele papinho etc. Por influência africana, o diminutivo para nós serve até de aumentativo: quando o pão de queijo acaba de sair do forno e está em sua máxima temperatura, dizemos: "aproveita, que está quentinho". Por influência africana, atenuamos o rígido "ter", que, entre nós virou (virar, outro brasileirismo) o mais democrático e fraternal "estar com". Mais importante que o tempo objetivo e comum é o tempo de cada um e nossa língua dispõe de um tempo personalizado ("amanheci meio jururu"). Ainda no âmbito do destaque da pessoa, enfatizamos a personalização com o artigo ("fala com a Fabiana ou com o Fernando") e dispomos de tantos outros recursos e modos que decorrem do "jeito de ser" brasileiro; que, por sua vez, também se configura quando - na escola e com Sinhá Zefa - aprendemos a língua... |
Senso de propriedade | Nos exemplos do quadro com Dorival Caymmi, na página anterior, destacamos a personalização. A língua espanhola também tem seus sutis requintes para esse caso, assim descritos em memorável conferência de Julián Marías, de 2000: "Eu fico impressionado com certas finuras da língua espanhola, que distingue entre coisa e pessoa de modo muito claro. Por exemplo, o acusativo de pessoa requer em espanhol a preposição a. Nas línguas que eu conheço isto não ocorre, o acusativo de pessoa se constrói com o verbo e o complemento direto e pronto. Em francês, em inglês, em alemão, em italiano etc., não ocorre essa distinção. Já o espanhol nunca dirá: "He visto Juan" ou "Quiero Isabel". Dirá "He visto a Juan", "Quiero a Isabel". E mais ainda: há um refinamento muito curioso no que se refere aos animais. Um caçador que volta da caça aos coelhos diz: "He matado seis conejos". Se dissesse "he matado a seis conejos" é que se sentiria vagamente culpado. Mas se a espingarda dispara por acidente e atinge o cachorro, ele dirá: "He matado a mi perro". E não: "He matado mi perro". Porque meu cachorro não é simplesmente uma coisa, eu não o trato como coisa; meu cachorro está personalizado, não é uma pessoa, mas tem sua vida de certo modo contagiada pela minha. Como podem ver, a língua tem seus refinamentos...". Concretude Mesmo o preconceito acha seus caminhos refinados, como mostra o mesmo Marías em outra palestra, em 2001, desta vez falando da língua alemã: "Dá-se um fato curioso no alemão: a antiga palavra para mulher, Weib - Frau não, Frau é uma palavra feminina - é neutra: das Weib, mulher neutro. Do mesmo modo que se usa o neutro para o diminutivo - por exemplo, moça, Mädchen é das Mädchen - ou ainda em das Pferd, cavalo. É que são coisas que se têm em propriedade: afinal, a mulher, das Weib, das Mädchen, das Fräulein, das Kind, a criança também é indistinta em gênero... São neutros. Por que neutros? Porque são considerados propriedades, isto é, a vivência primária com relação à mulher, à moça, à criança é a de propriedade. É, diríamos, um arcaísmo social que está na língua". Sempre me pareceu uma grave injustiça para com os alunos que os professores de línguas não destacassem e discutissem refinamentos como esses, carregados de sentido antropológico; e apresentassem a gramática como meras regras (ou exceções), o que é estéril até do mero ponto de vista do ensino da gramática, transformada numa memorização frustrante e insossa... |
O elefante da discórdia | Seria bem mais fácil a própria apreensão da gramática se os professores se lembrassem de, quando for o caso, discutir a filosofia ou sociologia subjacentes. Pensemos, por exemplo, no imenso e variado uso que a língua inglesa faz do gerúndio, das formas -ing. Parece-me que este fato gramatical guarda alguma relação com a tradição de pensamento inglês, tão frequentemente afeito ao empirismo, ao nominalismo, ao pragmatismo, ao fato que se manifesta à percepção. Como na antiga piada do concurso internacional de monografias sobre o elefante. Concorrem um alemão, um italiano, um francês e um inglês (claro que a piada admite diversas versões, com diferentes nacionalidades e desfechos: a única constante é o francês!). Na data da entrega, o alemão comparece com um grosso volume intitulado: "Prolegômenos aos pressupostos teóricos da essência da tromba. Volume I". O francês apresenta um elegante ensaio: "L'elephant et l'amour". O italiano: "L'elefante e la sua buona memoria: Perché lui non dimentica mai che há dovuto tutto a sua madre". Já o inglês traz simplesmente: "The Elephant" (ou "Elephants I have shot" ou "Elephants in British Empire"...). Segundo a maldade do narrador, pode-se acrescentar, o argentino, com o estudo: "La Argentina y los argentinos"; o americano: "The Elephant and the global war on terror" ou em versões pré 11-9: "How to breed more elephants in less time"; etc. Com todas as reservas para uma afirmação tão geral, o inglês parece tender ao fato concreto e a recusar abstrações desnecessárias, e isso de algum modo se traduz na gramática. Concretude Tomemos, por exemplo, os chamados verbs of perception, como to see, to hear, to overhear, to feel... Esses verbos não podem ser seguidos de infinitivo "com to", mas pela forma em -ing, que é o que, afinal de contas, se percebe: Didn't you hear the phone ringing?. Caberia também a forma nua: Didn't you hear the phone ring?, mas se se quer enfatizar a ação em processo, então se impõe o -ing: "Didn't you hear the phone ringing while I was in the bathroom?". Mas, em nenhum caso, o infinitivo com to; não se pode dizer: "Didn't you hear the phone to ring?". Curiosamente, em Portugal é ao contrário: a preferência pelo infinitivo em detrimento do gerúndio. O infinitivo puxa para o âmbito do abstrato; afinal eu não vejo "o correr"; não ouço "o tocar"; vejo, isso sim, o ladrão correndo da polícia; ouço meu vizinho tocando bateria... E há verbos, como to smell, to catch, to spot, to find que, ainda na fórmula verb + (pro)noun, só admitem a forma -ing (não aceitam sequer a forma nua); referem-se unicamente a processo, a gerúndio, a fato ocorrendo: eu só posso sentir o cheiro de algo queimando (assando ou fritando etc.); só posso apontar (spot) para algo que está ocorrendo; etc. Sem essas reflexões (que tanto ajudam à compreensão e memorização), a gramática torna-se uma opressora tabela de regras e exceções arbitrárias. |
Amor e "confusão" | Na metodologia filosófica que se volta para a linguagem, as distinções são importantes. Na próxima página veremos a riqueza da distinção que o francês faz entre espoir e espérance, requinte que outras línguas não dispõem. Mas não só a distinção é importante. Pieper indica também a "confusão" na linguagem, que nos leva à "confusão" no pensamento e corresponde ao fato de que a realidade é, em muitos casos, "confundente" (sem sentido pejorativo, mas no de "pensar conjuntamente"). Quem quer que se pergunte, filosoficamente, "O que, em si e afinal, é o amor?" deve atentar não só para as infinitas distinções de que as línguas grega, latina e neo-latinas apresentam, mas para as possibilidades confundentes do alemão que não dispõe senão de um só e confundente substantivo: Liebe. "Assim, usamos Liebe para expressar a preferência por uma determinada qualidade de vinho, como também para designar o solícito amor por uma pessoa que está passando por dificuldades; ou ainda para a atração mútua entre homem e mulher; ou a dedicação do coração a Deus. Para tudo isto, dispomos de um único substantivo: Liebe. (...) Esta manifesta, ou simplesmente aparente, pobreza do vocabulário alemão oferece-nos uma oportunidade especial: a de enfrentar o desafio, imposto pela própria linguagem, de não perder de vista aquilo que há de comum, de confundente entre todas as formas de amor (Pieper, 1981, 24)." A partir desse fato confundente, pôde Pieper chegar à caracterização fundamental do amor, comum a todas as formas expressas por diversos vocábulos em outras línguas. Trata-se do nível mais básico: o amor como aprovação de algo/alguém, ou na genial formulação de Pieper: amar é dizer: "Que bom que você exista! Que maravilha que estejas no mundo!" |
Confira | Lauand, Jean (2007) Filosofia, Linguagem, Arte e Educação, São Paulo, ESDC, 2007 Marías, Julián (2000) La Persona. Conferencia http://www.hottopos.com/mp2/mariaspers.htm Marías, Julián (2001) Enamoramiento: la persona que se convierte en proyecto. Conferencia http://www.hottopos.com/mirand12/jms5enam.htm Pieper, J. (1981) Glauben, Hoffen, Lieben, Freiburg, IBK. |
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| Sumário - EDIÇÃO 64 |
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