A linguagem serve para distinguir e para confundir. Em outros artigos para a
Língua, temos chamado a atenção para casos em que é oportuno o "
pensamiento confundente" (Ortega y Gasset): há situações em que a própria realidade convoca a "confusão" e seria uma tolice a pretensão de distinguir. O filósofo Julián Marías exemplifica com a maravilhosa palavra "bicho", que abriga confundentemente inúmeras realidades: se pousa um inseto no seu ombro, o melhor que eu tenho a fazer é avisar, afastando-o imediata e veementemente: "Xô, bicho...!". Certamente, os entomologistas distinguem centenas de milhares de espécies mas seria descabido, em nosso exemplo, referir-me a besouros, traças ou moscas (e mais ainda a determinações:
Ceratitis capitata, Tribolium castaneum, Ephestia elutella etc.); é um bicho e o melhor é tratá-lo de modo confundente e indiferenciado: "Xô, bicho!".
Mas, em muitos outros casos, a realidade requer distinção e é uma pena que nem sempre a linguagem a acompanhe, deixando o pensamento impreciso e menos penetrante. Para o futebol, dispomos de um rico e vivíssimo léxico que permite ao falante expressar - e até mesmo perceber... - sutis detalhes dentro do campo e fora dele. E a resolução da linguagem chega a distinguir por exemplo: bicicleta, meia-bicicleta, puxeta e voleio! Já, digamos, para os sentimentos humanos o léxico é muito pobre, impondo a uma palavra como "amor" uma carga confundente que a esvazia e deixando embolorar ou corromper, por falta de uso vivo apropriado, nossos derivados correspondentes aos do latim:
dilectio, affectio, caritas etc., tão agudos em seu sentido originário.
Quero ocupar-me de uma lacuna notória em nosso léxico de ofensas: trata-se de uma inconveniente inflação semântica que acaba por tirar o foco e desorientar os usuários de uma das principais palavras de insulto de que dispomos: "babaca".
BabacaEm todas as línguas, encontramos dezenas de formas (muitas vezes equivalentes dentro de um próprio idioma) para espezinhar o tolo: idiota, imbecil, trouxa, otário, tonto, burro, bocó, coió, tosco, sem noção, ou o recentemente popularizado "abestado" etc. Santo Tomás de Aquino, no século 13, chegou a caracterizar e diferenciar mais de vinte tipos:
asyneti, cataplex, credulus, fatuus, grossus, hebes, idiota, imbecillis, inanis, incrassatus, inexpertus, insensatus, insipiens, nescius, rusticus, stolidus, stultus, stupidus, tardus, turpis, vacuus e vecors (cf. meu estudo "Tolos e Tolices - o Besteirol na Análise de Tomás de Aquino"
http://www.hottopos.com/mp2/tontospt.htm).
O termo dessa família coloquialmente mais usado no Brasil é "babaca" (e os derivados: "babaquice", "babacão" etc.). Babaca (como "bomba" ou "pipoca") adquire força por incluir uma sugestão quase onomatopaica e, além disso, também pelo caráter chulo: por ser identificada com a genitália feminina.
Para o verbete "babaca", encontramos em Houaiss: "1. que ou o que é ingênuo; tabaca, simplório, tolo, babaquara; 2. que ou o que não tem vivacidade ou inteligência; bobo" e o Aurélio remete a: "1. Que diz ou pratica tolices; sem inteligência ou sem juízo. 2. Tonto, simplório, ingênuo. 3. Boquiaberto, pasmado. 8. Indivíduo tolo".
Mas, no uso real da palavra, dá-se, para além do significado de tolo pasmado, apalermado, sem iniciativa, a confusão com outro sentido não previsto pelos dicionários nem pela primeira impressão que temos do vocábulo. Esse caráter confundente de "babaca", ocorreu-me numa partida de xadrez pela internet.
PanacaEm um dos maiores clubes internacionais de xadrez virtual, eu estava enfrentando on-line um jogador (pelo
nickname, certamente devia ser brasileiro) e eu tinha a partida ganha, xeque-mate no próximo lance, quando meu adversário, para evitar a derrota, desconectou. Imediatamente pensei: "Que @#*&%$! O babaca desconectou!".
Mas será que se tratava do uso próprio de "babaca"? Na verdade, ele, brasileiramente esperto, evitou a derrota (e a correspondente queda no "ranking"), ao menos temporariamente. O expediente do prejudicado, nesses casos, é abrir um processinho no
adjudicate do clube, o que implica algum trabalho e demora (a fila, no caso, era de 926 partidas!) até que os pontos sejam atribuídos ao requerente pela arbitragem do clube. Há, além disso, outro incômodo: um número máximo de partidas adiadas permitidas por jogador, que, se honesto, usa essa quota para, de comum acordo com o adversário, deixar para continuar em outro dia. Enfim, uma chateação. Acaso não serei eu o babaca por ter essa trabalheira para ganhar uns míseros pontinhos num ranking que, afinal, não me rende um centavo?
Qual seria a palavra apropriada para qualificar meu oponente? A primeira que me ocorreu foi "panaca". Embora praticamente idêntica a "babaca", panaca parece que poderia comportar uma atitude ativa, mais do que o "babaca", que tende à tola pasmaceira. O panaca talvez pudesse ter iniciativas disparatadas: tenho conhecidos inteligentíssimos, nada babacas, mas que, talvez pudessem ser qualificados como panacas.
Um deles, um galã de meia-idade em sérios apuros financeiros, casou-se com uma encalhada rica (o amor é tão lindo...) e arrumou sua vida: não precisa mais se preocupar em trabalhar e dedica-se a uma intensa vida social, na qual pode desempenhar seu papel de entertainer barato: fazendo suas piadinhas bobas (tipo a da sobremesa: "gente, não é pa-vê; é pa-comê"), suas
practical jokes, como a de cumprimentar com um aparelhinho que aplica pequenos choques elétricos ao apertar a mão da visita que entra em sua casa etc. Certamente são babaquices (ou panaquices...), mas babaca ele não é...
Outro, um engenheiro muito bem-sucedido, espertíssimo em seus negócios (de babaca ele não tem nada), tem tiradas como a de reencontrar, por acaso, um colega de juventude e dizer: "Ô, Serjão, há quanto tempo..., aposto que você não se lembra do meu nome". Ante a hesitação da vítima, ele aproveita para constranger ainda mais, despejando dados exatos de onde Sérgio morava, nomes de seus pais etc. e exigindo um mínimo de reciprocidade. O Sérgio confidenciou-me que, após tantos anos, não teria condições de lembrar-se do panaca, mas acabou se lembrando precisamente por sua inconfundível panaquice: "Ah, agora lembrei, graaaande Jorge...".
PasmaceiraNa verdade, "panaca" não é a palavra adequada: está demasiadamente identificada com "babaca", pasmaceira. Mas quem sabe se precisamente por causa dessa disponibilidade ("babaca" já dá conta do passivo palerma) não possa vir a suprir a imensa lacuna em nossa língua para aquilo que o inglês designa por "
asshole".
Como em nossa língua qualificar, especificamente, a tolice presunçosa, pretensiosa, perigosa, arrogante, cheia de "iniciativas", como a dos conselheiros que quiseram proibir Monteiro Lobato por racismo; a do juizinho de Indaiatuba, que inventou de dar um cartão para o Messi em jogo beneficente; a do Dunga; a de George Bush etc.? Ou a do técnico da seleção japonesa, Masayoshi Manabe, quando - na histórica vitória de virada das meninas do Brasil, na semifinal do Mundial Feminino de Vôlei no Japão: o infeliz deu uma de joão sem braço para esfriar as brasileiras e tumultuar o
tie-break, no qual estava sendo derrotado por 13 a 8, interrompendo o jogo com um insólito pedido de tempo ao qual já não tinha direito?
Não se trata de inofensivos babacas! Mas, se não são babacas, eles são o quê? Como não temos a palavra exata em português, acabamos usando "babaca" mesmo (ou "panaca"), mas sem a precisão de
asshole. O mesmo acontece com os sinônimos de babaca. Quando - ante a obsessiva tentativa de impugnação da candidatura e da posse do deputado eleito Francisco Everardo Oliveira Silva - Lula afirmou: "O Tiririca é a cara da sociedade. Acho uma cretinice o que estão tentando fazer com o Tiririca" seria muito mais exato se ele pudesse dizer: o promotor é um
asshole.
Como todas as línguas, o inglês dispõe de inúmeras palavras para tolo (
fool, jerk, stupid, moron etc.), mas
asshole - mais chulo impossível - vai a esse ponto específico.
Tradução ruimO professor Robert Sutton, da Universidade Stanford, lançou o livro
The no Asshole Rule (a regra de não aceitar assholes), dedicado aos chefes brutais no meio empresarial. A tradução brasileira (2007) saiu com o título
Chega de babaquice - Como transformar um inferno em um ambiente de trabalho. Não dispomos de equivalente para a precisa palavra asshole e, portanto, o título da edição brasileira desorienta: em que pensamos, quando pensamos em um "gerente babaca" ou "chefe babaca"? Primeiramente, talvez, num bobalhão que deixa os funcionários abusarem nos horários, que não sabe exigir energicamente prazos etc. A entrevista de Sutton à revista
Época (14-5-2007), que de modo inadequado traduziu de
asshole por babaca, deixa claro a enorme falta de um termo em português para
asshole:"Por que o senhor decidiu colocar a palavra babaca [trocar por asshole] no título? Robert Sutton - (risos) Primeiro, porque chama a atenção. Depois, porque todo mundo sabe seu significado. Todo mundo trabalha ou trabalhou com um
babaca no escritório. Além disso, é uma palavra que não tem sinônimo. Quando encontro uma pessoa grosseira, que humilha os outros, um tirano, logo penso: que
babaca! É uma palavra precisa para definir pessoas que costumam destruir os colegas de trabalho. Nas empresas, os funcionários costumam usar termos mais educados. Dizem que os babacas são arrogantes, autoritários, truculentos, mal-educados. Mas isso é pouco. A palavra
babaca é a única que exprime exatamente o conceito que eu queria transmitir.
E o que é, exatamente, um babaca?Sutton - É aquela pessoa que grita, humilha os subordinados, diz que o que o funcionário faz sempre é ruim ou está errado. Geralmente, faz isso na frente dos outros. Outra atitude comum dos babacas é ignorar a presença dos subordinados. Passa por eles e não os cumprimenta. Simplesmente finge que eles não existem. É aquela pessoa que humilha os outros com frequência. Faz com que as pessoas se sintam oprimidas e sem energia. São intimidadores e, às vezes, não precisam usar as palavras para intimidar. Fazem isso apenas com olhares e atitudes. É diferente da pessoa que está num dia ruim e tem um acesso de raiva. O babaca tem essas atitudes com frequência. Eles costumam ocupar cargos de chefia e exercitam a crueldade com subordinados. É muito difícil encontrar um babaca que não tenha poder.
Os babacas não têm qualidades?Sutton - Eu não gosto de falar isso, mas preciso reconhecer que eles têm alguns pontos positivos. São bons competidores, sabem brigar e intimidar inimigos, extrair resultados de equipes de baixo desempenho."
NonsenseComo se vê, a tradução de
asshole por babaca (se tomarmos babaca em seu sentido principal) resulta em puro
nonsense: "é muito difícil encontrar um babaca que não tenha poder" "babaca é uma palavra que não tem sinônimo", "babacas são bons competidores..." etc.
O aspecto mais grave dessa lacuna em nossa língua torna-se evidente quando consideramos que a linguagem não é apenas meio de expressão da realidade vista, mas, muitas vezes, a própria condição para que possamos enxergar a realidade. Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Valem para toda a realidade humana as considerações sobre a "latência", que Abraham Moles tece em seu livro
O Kitsch. Valendo-se de uma metáfora fotográfica, ele fala de uma revelação das impressões confusas, pelo surgimento de um vocábulo:
"O surgimento nas línguas germânicas de um termo preciso ('Kitsch') para designá-lo levou-as a uma primeira tomada de consciência: através da palavra, o conceito torna-se passível de apreensão, e manipulável... O trajeto científico para conhecer, começa por nomear".
De fato, sem a posse da palavra
Kitsch é-nos muito mais difícil reparar em que há, no fundo, qualquer coisa de comum entre o pinguim da geladeira, o anãozinho do jardim e o quadro de cores fosforescentes... E o combate à realidade
kitsch requer a consciência dada pela existência do vocábulo.
Que falta faz no Brasil, que já inventou tantas palavras (algumas geniais) para condutas - como dizer que o cara é (muito...): porra louca, folgado, enjoado, maluco beleza, "bico" doce, espaçoso, baixo nível, sem noção, figuraça, paga pau, gente fina, fera - um equivalente de asshole...!
Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP