A revitalização da velha arte de contar piadas acaba de ganhar um poderoso aliado com os recursos da internet, como o YouTube.Há até concurso mundial, com prêmios ainda modestos, mas de futuro promissor: o site Comic Wonder, surgido com sucesso em dezembro, premiou em fevereiro seu primeiro campeão mundial: o norte-americano Chris Cashman, que participou com o apelido "Captainhilariousness" (suas piadas podem ser ouvidas em www.comicwonder.com/who/captainhilariousness).
Nesse curto período, Puzzled sister, a piada que deu o título a Cashman, consagrou-se com quase 10 mil audições e sua segunda mais ouvida, Pickle in your pants, teve 8.117 (em 4 de março).
Para além da técnica narrativa, essas piadas remetem a um tipo de humor que convida à reflexão, caso queiramos tentar esclarecer um pouco o mistério do cômico. Em Puzzled sister, a moça burrinha propõe ao irmão que, em vez de verem um filme de vídeo (programa habitual quando ele a visita semanalmente), façam, para variar, um quebra-cabeça, tão impressionante, que ela não sabe nem por onde começar.
- E tem que dar o quê? Qual é a figura da caixa?
- Deixa-me ver, onde é que está a caixa...? Acho que era um tigre... Ah, aqui está! (e despeja na mesa o conteúdo da caixa).
- Ooooh-kkayyy... Mas acho que nós não vamos conseguir fazer essa figura.
- Não me subestime. Eu sou muito boa em quebra-cabeças!
- Não, não, não, não é por aí. Vamos deixar isso de lado, relaxemos, assistamos a nosso filme, como sempre, e depois eu ajudo você a pôr de volta os sucrilhos na caixa, o.k.?
Para ficarmos só com o conteúdo, em Pickle in your pants, na praia, um rapaz vê um enxame de belas mulheres assediando um amigo e pergunta-lhe o segredo. O amigo revela que o segredo é enfiar um pepino no calção: isso as deixaria "loucas e excitadas". No dia seguinte, eles se encontram e o amigo pergunta se deu certo.
- Que nada! Veja, eu fiz o que você falou, mas elas fogem de mim apavoradas.
- Putz, peraí. Você enfiou o pepino no lado errado do calção!
Enredo e forma
Aqui, ocupamo-nos só do conteúdo, do "enredo" das piadas, embora lidemos com mestres da arte de contá-las (naturalmente, a técnica de contar a piada explora as potencialidades cômicas do enredo). Essas duas piadas apóiam-se em um recurso que produz efeito cômico: um certo "inesperado da linguagem". O inesperado, é claro, ocorre em qualquer situação de humor, mas essas situações podem ser de tipos variados, dando origem a diversos tipos de piada.
Há um humor do inesperado que virou transnacional. No caso de Cashman, como no do catalão Eugenio ou do brasileiro José Simão, o "truque" está em induzir o leitor a uma situação de aparente univocidade e, de repente (inesperadamente), irrompe uma segunda possibilidade semântica, até então inimaginável. A habilidade do autor e do narrador da piada está em camuflar ao máximo a outra possibilidade, esse oculto "duplo sentido".
Isso é possível porque o sentido (pretensamente) "unívoco" é dado pelo contexto. Uma das características fundamentais do contexto - e que está subjacente a todo falar - é que sobre o que é evidente não se fala. Essa regra básica - também ela evidente e, portanto, nem deveríamos nos deter nela... - é a que torna, em diversas línguas, o "não-falar" sinônimo de "evidente": "goes without saying", "ça va sans dire", "selbstverständlich" ou "per se notum" são simplesmente modos de dizer "evidente".
Assim, é evidente (e não só nem se fala mas nem sequer se pensa) que o pepino é para entrar no lado da frente do calção e caixa de sucrilhos não é quebra-cabeça... A graça surge quando um personagem toma - como "seu" evidente - a "outra" interpretação, que, na prática, estava fora do campo de possibilidades de quem ouve a narrativa da piada.
Cashman é um grande contador de piadas, mas, se quisermos nos aprofundar de verdade nesse tipo de humor, deveremos voltar-nos para outro artista, consagrado criador de piadas desse estilo (dentre as 15 mil que se estima ter contado) e que, por anos a fio, reinou absoluto no humor espanhol: Eugenio.
Humor do nosso tempo
Para ter uma idéia do sucesso de Eugenio, quem procurar no Google "chistes de Eugenio" encontrará por resultado 15 mil sites a ele dedicados; cem dos quais surgidos no último mês: sete anos após sua morte, a cada dia três novos sites falam das piadas de Eugenio.
O catalão Eugeni Jofra Bofarull obteve, por anos, incomparável sucesso em toda a Espanha - sobretudo na década de 1980, quando aparecia na TV, e virou mania nacional ouvir as fitas cassete de seus shows - como contador de piadas, ou, como ele preferia, "intérprete" (de "historias" ou "cuentos").
Apresentava-se de maneira séria e impassível, minimalista (nunca ria ao contar chistes), vestido de preto, com barba e óculos escuros, sentado em um tamborete, fumando o tempo todo e, entre uma piada e outra, dando pequenos tragos em um copo de vodca com laranja. Aqui e ali, misturava palavras catalãs ao castelhano. Seus "cuentos", de valor universal, são, ao mesmo tempo, uma sociologia da Espanha (e de suas regiões), caracterizando/ caricaturizando o cotidiano do país, sua idiossincrasia, em performance discreta, avessa a estridência, mas que (ou precisamente por isso...) é todo um curso sobre a peculiar prosódia espanhola, nas mais diversas situações da vida comum: nas relações familiares, profissionais, escolares etc.: ouvir Eugenio é um poderoso aliado dos professores de espanhol, um atalho para o estrangeiro que queira assenhorear-se do idioma falado.
Marca autoral
Em geral, ninguém sabe quem é o autor de uma piada: as piadas, desde o momento em que são inventadas, espalham-se de boca em boca com a velocidade da luz, e quem as conta não tem a preocupação de indicar a fonte, aliás, em geral, desconhecida, anônima, de domínio público. No fim de fevereiro, a imprensa anunciou a descoberta de duas múmias em São Paulo, no mosteiro da Luz: no dia seguinte circulavam piadas sobre o fato, sem que ninguém lembrasse quem as inventou.
Mas se pode, em certos casos, falar em autor de piadas, digamos, piadas de "José Simão" ou "chistes de Eugenio". E é que não só ouvimos (lemos) por primeira vez na coluna do Simão ou no show de Eugenio, mas são casos típicos, de "marca registrada" de um estilo de humor.
"E sabe por que o dólar tá caindo? Porque, depois que foi achado na cueca, ele foi pro saco. Nunca mais foi o mesmo. E do jeito que o dólar tá caindo, temos que indenizar o Cacciola por perdas e danos!"
Mesmo que não tenha sido o próprio José Simão a criar essa piada, ela, sem dúvida, é uma "piada de José Simão", tem seu estilo, a "cara dele". Como, certamente, é uma "piada de Groucho Marx" a seguinte, encontrada em A child of five would understand this. Send somebody to fetch a child of five - Groucho Marx (in Duck Soup, 1933):
- Uma criança de cinco anos entenderia isto.
- Então me consiga rapidamente uma criança de cinco anos.
Piadas "de Eugenio"
Independentemente de ter sido o próprio Eugenio a criar esta ou aquela piada, consolidou-se algo que, na Espanha, se chama "chistes de Eugenio", como tipo classificatório. A referência a Groucho Marx não foi casual, o estilo de Eugenio guarda relação com o dele: ambos voltam-se para o nonsense, aquele "inesperado semântico", as surpresas da linguagem, como Cashman e Zé Simão.
Mas se quisermos analisar isoladamente esse humor em estado, por assim dizer, "quimicamente puro", deveremos considerar o aspecto "confundente" da linguagem e o caráter neutro do discurso.
Uma das formas de acesso ao real é aquilo que Ortega y Gasset denominou "pensamento confundente", que, numa primeira aproximação, concentra numa única palavra realidades distintas, mas conexas (ver quadro página 54). Quanto ao neutro (ver quadro página 55), fomos apresentados a ele desde a infância: ao fim daqueles violentíssimos jogos de futebol de várzea, a fórmula do time adversário para despedir-se era: "Desculpe alguma coisa" (lançando os agravos reais no limbo do neutro, como se não tivesse havido concretíssimos pontapés desleais, caneladas etc.). Refugia-se no neutro o político que, no debate, teme a pergunta concreta e, para justificar sua ambição de cargos, diz que está obedecendo a um desejo das "bases".
Do ponto de vista da psicologia da comunicação, o neutro, indeterminado, convoca o interlocutor a preencher a (evidente ou não) lacuna por ele deixada. É precisamente essa indeterminação que permite o humor de Eugenio. A típica piada de Eugenio - tal como ocorre com Cashman, José Simão ou Groucho Marx - dá-se quando o caráter genérico e abstrato da linguagem parece ter sido eliminado (pelo contexto, pela articulação do discurso, pela prosódia...) e aparentemente ocorre uma situação totalmente unívoca, na qual o ouvinte nem imagina outra possibilidade e, de repente, um personagem instala-se com segurança e veemência nessa outra possibilidade, habilmente camuflada pelo humorista narrador.
Como nas piadas dos ministros ou da gorila, que apresentamos nestas páginas, com tradução em geral tendendo ao literal, para facilitar a compreensão do original em áudio nos links indicados.
Com amigos assim...
Sete horas da manhã. Fim de janeiro. Século 11. Baixa Idade Média. O cavaleiro regressa ao castelo, depois de uma dura batalha, em estado deplorável. Ia com a armadura toda amassada, o elmo retorcido, a cota de malha em frangalhos e o cavalo mancando. O senhor do castelo sai a seu encontro e diz:
- Mas o que foi que te aconteceu?
- Senhor, eu venho de servir a meu senhor, castigando vossos inimigos do Poente.
- Mas, o que estás dizendo...? Nunca tive inimigos no Poente!
- Ah, mas a partir de agora, sim, que tendes...
Na calçada do ministério
Aquele cara que vai a Madri e estaciona em frente ao Ministério. Vem o ordenança e diz:
- Por favor, cavalheiro, tire o carro daí porque os ministros podem sair a qualquer momento.
- Fique tranqüilo, pois eu tenho sistema antifurto...
O narrador permite o inesperado desfecho, que seria impossível se o segurança dissesse, por exemplo: "É proibido estacionar aí..."
Experiência científica
No jornal apareceu um anúncio que dizia:
"Laboratórios precisam de senhor de compleição forte e gozando de boa saúde para experiência científica".
Comparece um cara de dois metros, forte como um carvalho, transbordando saúde, mas com cara de panaca...
- Vim por causa do anúncio, de que se trata?
- Queremos cruzar uma gorila com um ser humano para ver qual será o resultado. O senhor estaria disposto a fazer a experiência por um milhão de pesetas? [na época, algo assim como cinco mil dólares].
- Quero impor três condições.
- Diga.
- A primeira é que quero por perto um guarda rural armado, para o caso de que a gorila me rejeite.
- Sim, de acordo.
- A segunda é que lhe pintem os lábios para que fique mais sexy.
- De acordo. E a terceira?
- E a terceira: se posso pagar o milhão de pesetas em três vezes.
A formulação "...por um milhão de pesetas?" deixa indeterminado se é para pagar ou para receber, o que permite o surpreendente desfecho. Como na piada brasileira do galinheiro, "teste de racismo" (quadro na página 54).
O pensamento confundente
Concentrar numa única palavra realidades distintas, mas conexas, cria estruturação própria de raciocínio
Uma das formas de acesso ao real é aquilo que o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) denominou "pensamento confundente". Se distinguir, dar nomes diferentes a realidades diferentes, é uma importante função da língua, "confundir" é, como já fazia notar o filósofo Julián Marías, igualmente importante.
"Não haveria como lidar intelectualmente com realidades complexas, em suas conexões, nas quais interessa ver o que há de comum e, portanto, o tipo de relações que há entre realidades que, de resto, são muito diferentes", declarou Marías em 26/5/1999, em entrevista ao site Hottopos (www.hottopos.com/videtur8/entrevista.htm), publicada na revista Videtur (no 8, 1999, DLO-FFLCH-USP).
Línguas orientais
Todas as línguas são, em maior ou menor grau, confundentes, embora a tendência ao confundir (e não há nisto juízo de valor) prevaleça nas línguas orientais. O português tem suas confundências. Sobretudo, o português do Brasil, com nossa propensão ao genérico, à indeterminação, ao neutro. Outro dia, dirigindo-me a um colega, vizinho de prédio, a quem freqüentemente dou carona, perguntei:
- E aí, vai para a USP amanhã?
- Devo ir.
O interlocutor não tem a imediata possibilidade de saber o que significa esse "devo", muito confundente. Se se tratasse de legendar uma cena de algum filme, como traduzi-lo, por exemplo, para o idioma inglês (should, have to, supposed to, must, ought...)?
Esse "devo" pode ser interpretado desde a mais absoluta e imperativa decisão de ir ("eu devo ir, senão a USP desmorona") até a mais descomprometida e frágil intenção ("não falei que iria, eu falei 'devo ir', e aí apareceu um desenho animado legal na TV e não fui").
Teste de racismo
Responda rápido:
Num galinheiro havia 30 galinhas.
Um negão levou 10 galinhas.
Quantas galinhas ficaram no galinheiro?
Resultado:
Se você respondeu 20 galinhas: você é racista.
Se você respondeu 40 galinhas: parabéns!
Se havia 30 e o negão levou (mais) 10, ficaram 40 galinhas.
Ninguém disse que o negão tinha roubado...
Cuidado! Racismo é crime inafiançável e imprescritível!
Atropelado
- Sabia que, segundo as estatísticas, em São Paulo, um motoqueiro é atropelado a cada três horas?
- Nossa, imagina como é que deve estar o coitado...?
A piada só é possível porque o que era para ser entendido como "um" indeterminado (neutro) é assumido como "um" determinado (masculino).
O que é o neutro?
No quadro geral do confundente, o neutro recebe destaque. Embora gramaticalmente inexistente no português, e em línguas que perderam esse poderoso recurso do latim, a necessidade do neutro é tanta que o recuperamos em construções alternativas. Utrum é a forma latina que exige a definição de um de dois; daí ne-utrum: nenhum dos dois, neutrum! Não ser nenhum dos dois, porque é ambos: confundente.
Engana-se quem, com o Aurélio, pensa que o neutro seja só um modo de designar o que não é macho ou fêmea, gênero para seres não animados, "em oposição aos animados, masculinos ou femininos". O neutro puxa para a abstração, a totalidade, a indeterminação. Masculino e feminino opõem-se ao neutro enquanto determinação; mais do que quanto a "gênero" ou sexo.
"O gênero neutro é informe e indistinto; enquanto o masculino (e o feminino) é formado e distinto. E, assim, o neutro permite adequadamente significar a essência comum, enquanto o masculino e o feminino apontam para um sujeito determinado dentro da natureza comum", explica Tomás de Aquino (Suma Teológica I, 31, 2 ad 4).
É quando dizemos a quem vem correndo para o elevador: "desculpe, não há mais lugar, já somos sete" (não interessam aqui as determinações desse "sete": não só as concretizações de sexo, homens/mulheres, mas de outras determinações concretas como: negros/brancos, alunos/professores, palmeirenses/corintianos etc.; trata-se do neutro "sete").
O neutro, indeterminado, mais do que o nulo, é o plural, ensina Roland Barthes (O Neutro, Martins Fontes, 2003, p. 247). O plural indetermina. Daí que, nos pronomes demonstrativos castelhanos, o plural do masculino siga o neutro: estos, esos (em vez de estes e eses). E, na língua inglesa, o plural é a forma de indeterminação: "diz-se" é they say... No plural, no indeterminado, diluem-se o diretor, o árbitro, o chefe, o malandro concretos e passamos aos neutros: "a direção", "a arbitragem", "a chefia", "a malandragem"...