[an error occurred while processing this directive] O pecado do agito vazio | Revista Língua Portuguesa
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O pecado do agito vazio
O Anúncio equivocado de que o Vaticano teria elaborado novos vícios capitais ilumina o fascínio atual pela retórica cristã e lembra o caso de mutação semântica que fez a "preguiça" tomar o lugar da "acídia" na doutrina dos pecados

Luiz Jean Lauand

A BBC anunciou em março o que os jornalistas chamam de "barriga", notícia mal apurada que depois não se confirma. O Vaticano, disse a BBC, elaborara nova lista de pecados capitais, fato logo desmentido.

A confusão originou-se em entrevista de Gianfranco Girotti, bispo regente da Penitenciária Apostólica, órgão para matérias do foro interno, como absolvição de pecados especiais, reservados à Santa Sé. Ele respondeu a uma pergunta sobre novos pecados e a mídia extrapolou para novos "sete pecados capitais".

O caso mostrou que a sesquimilenar idéia de pensar forças da autodestruição em pecados capitais exerce alta atração no homem atual. Idéia genial: a organização de dezenas de vícios em poucos eixos, que, firmados em 7, têm o atrativo adicional que tal número produz na imaginação. Comparada à doutrina dos mandamentos, a dos pecados capitais não tem, na história, fixidez em número e conteúdo: na origem, eram 8 e, de autor a autor, variam num ou noutro elemento semântico.

O atual Catecismo da Igreja Católica, ponto 1.866, traz como pecados capitais: soberba, avareza, inveja, ira, impureza, gula e preguiça ou acídia. Sugestiva, intrigante ambigüidade: a familiar preguiça ou a desconhecida acídia? São sinônimas? Na verdade, parece não se querer como capital um pecado de que não se ouviu falar; talvez haja vergonha de alçar, sem mais, a inofensiva preguiça ao posto.

Do deserto
Se a preguiça parece pecadilho, a acídia é coisa séria: é tristeza pelo bem espiritual; a queimadura interior de quem recusa os bens do espírito. Por séculos, tal tristeza foi pecado capital. O filósofo alemão Josef Pieper nota que não há conceito ético mais aburguesado na consciência cristã que o de acídia. E faz uma formulação forte em Virtudes Fundamentales (Madri, Rialp, 1976, pp. 393-394):

"O fato de que a preguiça esteja entre os pecados capitais parece que é, por assim dizer, uma confirmação e sanção religiosa da ordem capitalista de trabalho. Ora, esta idéia é não só uma banalização e esvaziamento do conceito primário teológico-moral da acídia, mas até mesmo sua verdadeira inversão".

Para São Gregório Magno, os pecados capitais são: vanglória, inveja, ira, tristeza, avareza, gula e luxúria. Se os mandamentos estão na Bíblia, vícios capitais são elaboração de pensamento, fruto da "experiência cristã", a dos padres do deserto, que fizeram uma tomografia da alma e descobriram possibilidades para o bem e o mal. Como num rali, em que as máquinas passam por condições extremas, o monaquismo originário testava os limites antropológicos, em corpo e espírito (jejum, vígilia, oração etc.). Nesse quadro, surgiu a doutrina dos pecados capitais.

As primeiras tentativas de organizar essa experiência remontam a Evágrio Pôntico, João Cassiano e Gregório Magno, mas só muito depois há a consolidação de Tomás de Aquino (século 13), que repensa (de modo amplo e sistemático) a antropologia subjacente aos vícios capitais.

Os vícios capitais para ele são: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Derivam de caput: cabeça, líder, chefe; sete poderosos chefões que comandam, produzem vícios subordinados. Assim, gozam de especial "liderança" (nos dois sentidos: está em primeiro lugar e dirige, é leader). Vício é restrição à liberdade e condicionamento para agir mal.
A acídia é uma tristeza. Não só ­é um mal, mas fonte de outros males.

"Como já dissemos, vício capital é aquele do qual naturalmente procedem - a título de finalidade - outros vícios. E assim como os homens fazem muitas coisas por causa do prazer - para obtê-lo ou movidos pelo impulso do prazer - assim também fazem muitas coisas por causa da tristeza: para evitá-la ou arrastados pelo peso da tristeza. E esse tipo de tristeza, a acídia, é convenientemente situado como vício capital", diz Tomás (II-II q. 35, a.4).

Ação da inação
Acídia é base de atitudes contrárias. Uma leva à ação, a um ativismo. Outra é inação (o momento, secundário, em que acídia e preguiça se ligam). Leva à inação, e também à inquietude, à ação desenfreada. Para já, vale o poema A troca de pneu (Der Radwechsel), de Bertolt Brecht:
"Fico sentado à beira da estrada / O chofer troca o pneu / Não "tô legal", lá de onde venho / Não "tô legal", lá para onde vou / Por que sigo a troca do pneu / Com impaciência?"
(Ich sitze am Straßenhang / Der Fahrer wechselt das Rad / Ich bin nicht gern, wo ich herkomme / Ich bin nicht gern, wo ich hinfahre / Warum sehe ich den Radwechsel / Mit Ungeduld?).

No fazer e no não-fazer, o tédio. Fernando Pessoa, no Livro do desassossego (#263), diagnostica tal tédio em múltiplos aspectos; limitemo-nos à passagem em que o problema não está no trabalho ou no repouso, mas no centro do eu:
"O tédio... Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da acção chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim".

Como vício capital, a acídia tem filhas. A primeira é o desespero, a que Pieper liga uma "irmã", a pusilanimidade. Paralisado pela vertigem, pelo medo das alturas espirituais e existenciais a que Deus o chama, não há ânimo ou vontade de ser tão grande como está chamado a ser; abdica-se do "torna-te o que és", a sentença com que Píndaro resume a ética. No plano da graça, a acídia é um aborrecer-se de que Deus o tenha elevado ao plano da filiação divina, à participação em sua vida.

Queimado por essa tristeza suicida, surge a evagatio mentis, a dispersão de quem renuncia a seu centro interior e entrega-se à importunitas: abandonar a torre do espírito para derramar-se no variado, afogando a sede na água salgada de compensações e prazeres da ação desenfreada: o falatório inócuo (verbositas), o agitar-se, o mover-se (inquietudo corporis), a incapacidade de concentrar-se num propósito (instabilitas) e um afã desordenado de sensações e conhecimento (curiositas).

Evidentes perigos: desenraizamento, abdicação do processo de auto-realizar o eu, que passa a espalhar-se no variado (importune ad diversa se diffundere). Se já Pascal, em Pensamentos (136/139), diz que a infelicidade vem de o homem não poder estar a sós num quarto, hoje as possibilidades de dispersão se ampliaram.

Doença, pecado ou falta moral + enfermidade, tristeza é força destruidora, convidando a (ou impondo) compulsões: das drogas ao jogo, do consumismo ao workaholism etc. Por trás disso, não há algo daquela desperatio, da curiositas, da evagatio mentis, da instabilitas?
A atividade desenfreada, que cria um vazio, era pecado capital até ser trocada pela preguisa, num aval religioso de ordem capitalista

- O rugido do ligre
- O sentido da pessoa
- Para ler e aprender
- Descascar as leituras

 
 
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