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Revelações que vêm do alto: Deus - inspiração - cotidiano -arte são os elementos essenciais para a obra de Adélia Prado |
Há experiências poéticas que são também religiosas, ao dizer que, de algum modo, seria da presença de Deus no cotidiano que se alimentam a arte e a percepção do belo. Adélia Prado expressa experiência do gênero. Em conferência exibida em 6 de agosto, no programa Sempre um Papo, da TV Câmara (
www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/index.php), ela reafirmou a visão de mundo que informa sua poesia: a mística do cotidiano.
- Minha insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele: é muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós só temos o cotidiano, que é absolutamente ordinário (ele não é extra-ordinário) - diz Adélia Prado. E eu tenho absoluta convicção de que é atrás, através do cotidiano, que se revelam a metafísica e a beleza; já está na Criação, na nossa vida.
A arte, para Adélia, só floresceria como expressão de afirmação e louvor a Deus, pela beleza do mundo:
- O nosso heróico, o nosso heroísmo é deste cotidiano... nossa vida é linda: o cotidiano é o grande tesouro, como diz um filósofo: admirar-se do que é natural é que é o bacana; admirar-se desta água aqui, quem é que se admira da água, a que estamos tão habituados? Mas a alma criadora sensível, um belo dia se admira desse ser extraordinário, essa água que está tremeluzindo aqui na minha frente e, na verdade, eu não entendo a água, eu não entendo o abacaxi, eu não entendo o feijão.
O exemplo do feijão é promissor:
- Alguém aqui entende o feijão? Admirar-se de um bezerro de duas cabeças, qualquer débil mental se admira, mas admirar-se do que é natural, só quem está cheio do Espírito Santo. Eu quero essa vidinha, essa é que é a boa, com toda a chaturinha dela e suas coisas difíceis... O cotidiano tem para mim esse aspecto de tesouro (e recita): "Há mulheres que dizem: / Meu marido, se quiser pescar, pesque, / mas que limpe os peixes".
Enganar-se-ia quem pensasse que se trata de visão necessariamente confessional de Adélia; há 2.500 anos já Heráclito de Éfeso afirmava essa presença divina no trivial, em episódio narrado por Aristóteles:
"Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou (eles ainda hesitantes) a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui os deuses também estão presentes'" (De part. anim., A5 645 a 17 e ss.).
Em vez do "sábio" - imerso nas profundezas do pensamento, investigando os segredos da divindade - esses visitantes encontram Heráclito prosaicamente aquecendo-se ao fogão. E o filósofo tem de instruir esses curiosos desavisados:
"Mesmo aqui, junto ao forno, mesmo neste lugar cotidiano e comum onde cada coisa e situação, cada ato e pensamento se oferecem de maneira confiante, familiar e ordinária; 'mesmo aqui', nesta dimensão do ordinário, os deuses também estão presentes. A essência dos deuses, tal como apareceu para os gregos, é precisamente esse aparecimento, entendido como um olhar a tal ponto compenetrado no ordinário que, atravessando-o e perpassando-o, é o próprio extraordinário o que se expõe na dimensão do ordinário". (Heidegger, M. Heráclito, Relume Dumará, pp. 23-24.)
Duas horas da tarde no Brasil (fragmento) | Frigoríficos são horríveis mas devo poetizá-los para que nada escape à redenção Frigorífico do Jibóia Carne fresca Preço jóia. De novo quero rezar pra não ficar estrangeira 'meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?' Dizei-me quem sois Vós e quem sou eu, dizei-me quem sois Vós e quem sou eu. (Poesia Reunida, Siciliano, 1991: 326)
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Essencial esquecido
Se a arte, tal como a filosofia, tem a missão de recordar os "essenciais esquecidos", esse episódio já teria o mérito de lembrar a presença divina no trivial. O alcance do posicionamento de Heráclito é, porém, ainda mais profundo e a análise de Heidegger chega a conclusão muito mais forte. É o que, em português, podemos expressar lendo o "mesmo aqui" de Heráclito como "aqui mesmo". No fundo, Heráclito não diz "Mesmo aqui estão os deuses", mas: "É aqui mesmo que os deuses estão". Aqui mesmo: junto ao forno, no trivial do cotidiano; nas palavras de Heidegger: "Quando o pensador diz 'Mesmo aqui', junto ao forno, vigora o extraordinário, quer dizer na verdade: só aqui há vigência dos deuses. Onde realmente? No inaparente do cotidiano" (op. cit., p. 24).
O pensamento cristão irá incorporar essa idéia e quando Tomás de Aquino (uma das referências de Adélia) elabora sua síntese, incorporando, no centro de seu pensamento, a doutrina neoplatônica da participação, lança bases teóricas que fundamentam a mística do cotidiano. Naturalmente, a participatio é um difícil conceito filosófico-teológico, mas aqui bastem-nos alguns traços ligeiros, para estabelecer o relacionamento com a poética adeliana.
Para Tomás, participar é ter, em oposição a ser: receber daquele que é. Deus é o ser; a criatura tem o ser, recebe - a partir do nada - o ser. O metal "tem" calor, recebe o calor que "é" no fogo; assim, a criação é o ato em que nos é dado o ser em participação. E por isso que tudo o que é, é bom: participa do Ser (e do Bem). E assim viemos dar com uma importante afirmação de Tomás, base da estética:
"Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de qualquer bem criado é também certa semelhança e participação da felicidade definitiva" (De Malo 5, 1, ad 5).
Inaparente
A arte faz-nos ver (ou entrever) essa realidade transcendente no cotidiano e, sem ela, recairíamos na desolação; ou, para irmos direto ao verso de Adélia Prado (Poesia Reunida, p. 199):
"De vez em quando Deus me tira
a poesia.
Olho pedra e vejo pedra mesmo"
Nesses versos encontram-se, de modo maximamente resumido, os elementos essenciais da obra de Adélia: Deus-inspiração-cotidiano-arte. Guiados pela poesia, também nós, os não artistas, podemos ver esse plus, para além da mera pedra. A própria Adélia insiste nesse cotidiano como objeto de transcendência. Em uma entrevista que lhe fiz em 1993, a poeta declarava:
- Onde é que estão os grandes temas? Para mim, aí é que está o grande equívoco. O grande tema é o real, o real; o real é o grande tema. E onde é que nós temos o real? É na cena cotidiana. Todo mundo só tem o cotidiano e não tem outra coisa. Eu tenho esta vidinha de todo dia com suas necessidades mais primárias e irreprimíveis. É nisso que a metafísica pisca para mim. E a coisa da transcendência, quer dizer: a transcendência mora, pousa nas coisas... está pousada ou está encarnada nas coisas. (http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm , No. 3).
A poesia, a salvação e a vida | Seo Raul tem uma calça azul-pavão e atravessa a rua de manhã pra dar risada com o vizinho. Negro bom. O azul da calça de seo Raul parece pintado por pintor; mais é uma cor que uma calça. Eu fico pensando: o que é que a calça de seo Raul tem que ver com o momento em que Pilatos decide a inscrição JESUS NAZARENUS REX JUDAEORUM. Eu não sei o que é, mas sei que existe um grão de salvação escondido nas coisas deste mundo. Senão, como explicar: o rosto de Jesus tem manchas roxas, reluz o broche de bronze que prende as capas nos ombros dos soldados romanos. O raio fende o céu: amarelo-azul profundo. Os rostos ficam pálidos, a cor da terra, a cor do sangue pisado. De que cor eram os olhos do centurião convertido? A calça azul de seo Raul pra mim faz parte da Bíblia. (Poesia Reunida, Siciliano, 1991: 216) |
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Que fazem as artes senão guiar nosso olhar para esse "plus": a pedra não é prosaica pedra; ou melhor, sendo pedra (e precisamente por ser) é mais que pedra... É, como diz Adélia noutro verso, a "magnífica insuficiência" a convocar a arte. O despertar para o encanto da realidade, para o plus da pedra, é classicamente afirmado como a vocação da poesia e, neste ponto (afirmam filósofos tão clássicos como Aristóteles e Tomás de Aquino), o poeta assemelha-se ao filósofo, pois "uterque circa mirandum versatur": ambos se voltam ao mirandum, àquilo que suscita a admiração.
A afirmação da admiração como princípio da linguagem do filosofar/poetar é, ao mesmo tempo, afirmação de compromisso com a realidade mais simples e cotidiana. Há aburguesamento do espírito quando o homem deixa de admirar-se ou precisa do sensacionalismo, do estapafúrdio, para provocar em si um Ersatz da admiração, da real admiração, no dizer do alemão Josef Pieper (Was heisst Philosophieren?, München, Kösel, 8a ed., 1980: 63):
"Perceber no comum e no diário aquilo que é incomum e não-diário, o mirandum, eis o princípio do filosofar (...) tanto o filósofo como o poeta se ocupam desse maravilhoso", diz Pieper.
Compromisso
É questão de sensibilidade: o filósofo e o poeta não habitam um mundo diferente, mas sabem ver - com olhos de admiração - o sentido e a beleza que se encerram na realidade de cada dia. Para nós, a realidade deixou de ser objeto de contemplativa admiração e passou a ser opaca matéria-prima... A discreta simplicidade dos valores da poesia escapa à sufocante mentalidade consumista e massificada, amarga e reivindicatória, do homem que se quer auto-suficiente num mundo tecnologicamente domesticado, que, quando muito, só se deixa atingir por "efeitos especiais": não por acaso "sofisticado" deriva de "sofista".
A poesia de Adélia instala-se numa visão do mundo informada pela doutrina da participação: a resposta de Tomás de Aquino ao desafio lançado pela revelação cristã, que não admite um Deus confundido panteisticamente com o mundo, nem um Deus absolutamente alheio a ele. As coisas se complicam quando, além do mais, afirma-se que "o Logos se fez carne e habitou entre nós". Se já, pela Criação, há uma interface pela qual as coisas do mundo manifestam a presença de Deus, pela Encarnação Cristo encabeça toda a realidade criada e a incorpora a seu plano redentor.
Transtorno
Certamente, o fato de a arte remeter a Deus é mais aceitável quando estamos diante da beleza pura. As musas são um dom da divindade: não por acaso, instintivamente, o homem tende a evocar Deus quando a beleza inesperada ou intensa arranca-o do marasmo cotidiano, como em Castro Alves: "Meu Deus! Quanta beleza...". Mas a epístola aos Colossenses fala da reconciliação de toda a realidade com Deus. É o mistério que é expresso na mística de Adélia Prado, que encontra Deus não só nas maravilhas das belezas manifestas da natureza, mas até nas situações prosaicas: das tripas de peixe, de Casamento (pág. 56), ao sebo das peças de frigorífico, em Duas Horas da Tarde no Brasil (pág. 53), passando por uma mera calça em A Poesia, a Salvação e a Vida.
De fato, quem afirma com o cristianismo que o mundo é Criação, que Deus é criador também da matéria, afirma o caráter maravilhoso de cada coisa criada, que nos convida à contemplação de Deus. Por outro lado, Tomás nota que a mesma criatura, que nos enleva, pode produzir efeito depressivo, remeter ao nada; o nada, a partir do qual ela foi criada.
É isso o que Pieper chama de "transtorno bipolar" ou "psicose maníaco-depressiva", "psicose" que é a normalidade do homem comum, que se põe em contato com o ser, a filosofar (poetar), e sofre um efeito perturbador: por um lado, euforia extrema, pois encontra a beleza e a verdade de Deus no mundo, e, por outro, uma profunda depressão. A situação de "normalidade psicótica" do homem foi expressa por Adélia Prado no inédito Acácias (a mim confiado em 1993), que fala do transtorno, angústia, ante a beleza de uma criatura, simples acácia que seja.
Minha alma quer ver a Deus.
Eu não quero morrer.
Quero amar sem limites
E perdoar a ponto de esquecer-me
Radical, quer dizer pela raiz
O perdão radical gera alegria
Exorciza doenças, mata o medo
Dá poder sobre feras e demônios
Falo. E falo é também membro viril,
Todo léxico é pobre,
Idiomas são pecados;
Poemas, culpas antecipadamente
perdoadas
Eis, esta acácia florida gera angústia
Para livrar-me, empenho-me
Em esgotar-lhe a beleza
Beleza importuna,
Magnífica insuficiência,
Porque ainda convoca
O poema perfeito.
A força da arte faz com que abramos os olhos à maravilha da Criação, a da experiência humana que nos aguarda, diz Adélia Prado.
- E por causa dessa qualidade eterna, dessa imponderabilidade, eu vejo que, para a humanização, a arte está no mesmo caminho da mística ou da fé religiosa: ambas as experiências são independentes da razão: são experiências; a beleza é uma experiência e não um discurso.
Como quando, exemplifica Adélia, num caminho habitual, nos espantamos com algo (casa, obra, coisa) que já tínhamos visto: "Que beleza! Nunca tinha enxergado isso desse jeito!". É numa situação assim, avisa a poeta, que se pode dar graças: estamos tendo uma experiência poética que é, ao mesmo tempo, religiosa, pois nos liga a um centro de significação e de sentido. Como só Adélia Prado faria.
Luiz Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP. jeanlaua@usp.br