Uma das grandes dificuldades
de aprendizagem de uma língua estrangeira
(e também da materna), sobretudo no escrever
e falar, reside no fato de que há sintagmas,
associações de palavras (em alguns casos,
autênticos clichês), formas concretas de
expressão, mais ou menos fixas do ponto de
vista da correção ou da estética, que multiplicam
a necessidade de memorização, desnecessária
se trabalhássemos só com a uniformidade
(e pobreza...) do caso geral.
Assim, por exemplo, o geral "unidade"
dá lugar a mil ocorrências distintas quando
se desce ao concreto: falamos em "cabeças"
de gado, "pés" de alface, "partidas" de
futebol, "peças de teatro" etc. e não cabe
"unidades" de gado, de alface, de futebol,
"unidades de teatro" etc., embora, do ponto
de vista do significado, "cabeças", "pés",
"partidas" e "peças" signifiquem, precisamente,
"unidades".
Naturalmente, cada língua tem suas formas
de associação nessas composições e enquanto
nós fazemos um cheque ou compomos uma canção,
o inglês "escreve" (write) um cheque e "escreve"
uma canção. Mesmo que seja para sempre (e
até antes da lei do divórcio) na Espanha, se
uma pessoa é casada, diz-se "está casada" (sem
nenhuma alusão de provisoriedade) e o francês
usa o faire até no sentido de "dizer". "Preste
atenção" tem seus correspondentes em "fais
attention", "pay attention", "estate
atento"...
Leques
O fenômeno é mais extenso do que à primeira
vista supomos e para, de algum modo, verificar
isto felizmente dispomos de um sensor de
uso de expressões: o Google (ou outra ferramenta
de busca na internet). Quando lançamos uma
seqüência de palavras no boxe de busca "a
expressão" - apesar de todas as imprecisões
e distorções - o Google, ao indicar em quantos
sites da rede aquela seqüência de palavras
aparece, já nos dá uma boa idéia da vigência
e da atualidade de seu uso.
Por exemplo, procurando no Google
a expressão "usar leque" encontramos exíguas
19 ocorrências (claro, as novas gerações
nunca viram um leque), enquanto "ligar o
ar-condicionado" tem 41.200; a tal da "unidades
de gado" tem 12 ocorrências, enquanto "cabeças
de gado" tem 139 mil. Estes acessos são dos
últimos dias de julho e primeiros de agosto
de 2008.
Procurando avaliar a extensão
do fenômeno do desdobramento concreto, tomemos
o unitário abstrato: "pouco", para quantidade
ou intensidade (em algumas expressões, esses
desdobramentos serão negativos, como, por
exemplo: "ele não tem um pingo de vergonha
na cara"). Para começar, consideremos o caso
de uma dúvida, idéia ou lembrança pouco intensas.
Falaremos de "sombra de dúvida" (222 mil
ocorrências), "pálida idéia" (14.200) e
"vaga lembrança" (26.200).
Certamente, todos entenderiam
se eu dissesse "pálida lembrança", "pálida
dúvida" ou "sombra de lembrança" (1.170 ,
44 e 10, respectivamente), mas o uso recomenda
as formas do parágrafo anterior; cabem também
"vaga idéia" (50.900) e, no caso de "noção",
"vaga noção" (8.420) e "leve noção" (4.230).
Uma curiosidade: o recente "sem noção" quebra
todos os recordes, beirando o 1 milhão.
Pouco
Se a inveja vem em "ponta" (ou pontinha);
o ciúme dá-se em pitada; a ingenuidade, em
doses; a vergonha na cara, em pingos etc.
Temos: "leve impressão" (34 mil), "toque
de classe" (44.400), "leve suspeita" (4.470),
"ponta de inveja" (24.900), "pitada de ciúme"
(1.010), "traço de tristeza" (2.750), "dose
de ingenuidade" (2.660, geralmente antecedida
de "grande"), "pingo de vergonha" (48.200),
"resto de esperança" (9.990) e "pinta de
palhaço" (3.060, ajudado pela antiga canção
Palhaçada).
A tabela na página 40 dá idéia
da maior ou menor popularidade dos esquivalentes
da palavra "pouco" na internet. "Pouco" para
a prosa é "um dedo"; para cachaça, "dois
dedos"; para guloseimas temos um "teco".
Já a pouca visibilidade dá-se em "palmo".
E há "fio de voz"; "gostinho de infância";
"gole de álcool" (com índice alto de ocorrências
no Google, ajudado pela recente "lei seca"),
"pingo de gente", "bocadinho de sorte" (mais
em Portugal), "pedaço de mau caminho"...
Quanto à pouca duração, encontramos:
"assomo de coragem", "acesso de fúria", "rompante
de raiva", "momento de indecisão". Poucos
recursos são "escassos recursos", pouca
diferença é "sutil diferença", e encontramos
pouca densidade no "café ralo". Para pouca
distância, há "beirando o desespero"; chegando
"às raias da loucura" - mais freqüente do
que "beirando a loucura" e esta menos usada
do que "beirando a insanidade"...
Meio
Outro dado interessante diz respeito aos
equivalentes do geral "pouco", como o brasileiríssimo
"meio": aquele supera este em expressões
como "um pouco chateado" contra "meio chateado"
(ver página ao lado); mas "meio" ganha de
"um pouco" em: "um pouco sem graça" x "meio
sem graça"; "um pouco louco" x "meio louco";
"um pouco chato" x "meio chato" ; "um pouco
desconfiado" x "meio desconfiado"; "um pouco
puto" x "meio puto"; "um pouco besta" x "meio
besta"; "um pouco veado" x "meio veado".
No caso de "um pouco desanimado"
x "meio desanimado" há ligeira, mas significativa,
prevalência de "meio", que se amplia no
"aumentativo": "um pouco desanimadão x "meio
desanimadão"; talvez pelo fato de "pouco"
bater de frente com o aumentativo... Daí
que: "um pouco esquisitão" x "meio esquisitão";
"um pouco ressabiado x "meio ressabiado";
"um pouco assim, assim" x "meio assim, assim",
em que "meio" é palavra de predileção.
E, em geral, a expressão "ficando
meio" emprega-se muito mais vezes do que
"ficando um pouco": 64 mil x 37 mil. Já a
equivalente, menos usada, "ficando um tanto"
ocorre 5.410 vezes. Temos "um tanto estranho"
(69.200) x "meio estranho" (345 mil) x "um
pouco estranho" (99.800) (há a opção "um
tanto quanto", não desprezível em expressões
como "um tanto quanto estranho" (21.200);
"um tanto quanto esquisito" (2.640).
Dicionários
Dois outros
sinônimos de "pouco" têm um comportamento muito
curioso: "bocado" e "punhado". Diz o
Aurélio:
- Bocado - Pequena quantidade de qualquer
coisa.
- Punhado - Pequena porção; número reduzido.
Já o Houaiss adverte para o ambíguo
caráter de "punhado":
- Bocado - fração de uma coisa; pedaço,
porção.
- Punhado - quantidade pequena (de algo)...
ou quantidade grande (desse mesmo algo)!!!
O fato é que "bocado" e "punhado" podem
servir tanto para indicar "pouco" como "muito":
fato que não deve surpreender num país em
que o diminutivo pode servir também de aumentativo,
como quando se diz do pão de queijo que acaba
de sair do forno "está quentinho"; ou da
moça apaixonada em grau superlativo por
um rapaz, que "está caidinha por ele" (ou
"caidaça").
Para "punhado", recolho ainda
no Houaiss, quantidade pequena: "um punhado
de soldados lutou contra os insurretos".
E para "bocado", no sentido de "grande quantidade",
basta lembrar de O Pequeno Burguês, do sambista
Martinho da Vila:
E quem
quiser ser como eu,
Vai ter de penar um bocado
Por trás da rotina e dos clichês,
essa imensa variedade de formas é, afinal,
a riqueza da língua e de sua capacidade expressiva.
Já Orwell advertia, em seu 1984, que a "novilíngua",
principal instrumento a serviço da opressão,
tinha como missão diminuir o âmbito do
pensamento e reduzir ao mínimo as possibilidades
de escolha das palavras. E, de fato, a cada
ano o vocabulário diminuía, o que era considerado
um avanço, pois quanto menos possibilidades
de escolha, menor a tentação de produzir
pensamento...
Nem sempre atinamos com as razões
- se é que sempre as há - para o uso desta
ou daquela palavra nas expressões; o fato
é que usamos "margem" de lucro e de erro,
e se a freqüência de uso de "faixa" de incerteza
e de confiança é praticamente a mesma dos
correspondentes "margem" de incerteza e de
confiança, não se pode dizer: "não deixa
faixa para dúvidas", porque o uso impõe:
"não deixa margem a dúvidas". E embora se
trate de margem/faixa, na tabela de classificação
do campeonato brasileiro, a única expressão
legitimada pelo uso é "zona de rebaixamento".
Se a avaliação do carro tem "itens", a
da escola de samba tem "quesitos". Como
faz o pobre do estrangeiro para adivinhar?
Sem "sombra" de dúvida (a dúvida tem sombra!)
ele acabará por "cair" no ridículo (e mais
essa: no ridículo... se cai!) e está "coberto"
de razão quem "levante" a suspeita de que
ele ficará "mergulhado" na incerteza e "envolto"
em dúvidas.
Faça você
mesmo |
- Escolha uma palavra
ou expressão que, em sua opinião, tem muitos
sentidos, variações ou termos equivalentes.
- Faça uma lista de expressões.
- Use um mecanismo de busca na internet,
como o Google ou o Yahoo!, e descubra a "popularidade"
de cada expressão.
- O que as diferenças encontradas podem
significar?
|
|
Moda
Cabe
lembrar que essas formas associativas podem
mudar com o tempo, com a moda: já que estamos
falando em "dúvida", cada vez mais cai no
esquecimento a antiga expressão "dúvida atroz"
(ainda com 9.040 ocorrências no Google),
substituída, hoje, sobretudo por "dúvida
cruel" (281 mil) e não se diz, digamos, "dúvida
amarga" (34) ou "dúvida dolorida" (8), formas
que podem vir a prevalecer no futuro.
Se as razões dessas escolhas
nem sempre são claras, em alguns casos podemos
identificá-las. Algumas procedem de frases
famosas de políticos, futebolistas, personagens
de telenovelas..., que criam (ou revitalizam)
expressões como: "eu sou mais eu", "é o cara",
"com tudo a que tem direito", "muita calma
nessa hora" etc. Outras são frases de peças
literárias, partes de antigos provérbios
ou piadas. A maior parte dos usuários da
famosíssima "cara-pálida" (150 mil) - "nós,
quem, cara-pálida?", ignora a origem dessa
expressão, usada por A para abortar a tentativa
do interlocutor, B, de envolver A em um problema
que é só de B.
Mais fácil é contar a piada:
no início dos anos 60, a TV brasileira exibia
o seriado do herói Lone Ranger, que, no Brasil,
foi batizado de Zorro (não deve ser confundido
com o autêntico Zorro, o da capa e espada),
um ranger sempre acompanhado do fiel índio
Tonto. Um dia Zorro e Tonto encontram-se
encurralados por índios sioux de um lado;
comanches, apaches e moicanos pelos outros
lados. Quando acaba a munição, Zorro se
lamenta: "Nós estamos perdidos, Tonto".
Tonto faz sua melhor pose de índio, capricha
no sotaque e responde: "Nós, quem, cara-pálida?".
Também é uma piada a raiz de "amigo da onça"
(45 mil).
Soneto
Outras fontes: provérbios, literatura,
canções, publicidade... Alguém sumido aparece
e logo surgem os indefectíveis "o bom filho
à casa torna" (132 mil) e "longo e tenebroso
inverno" (86.100); este, oriundo da ironia
dos antigos ginásio e "normal", quando as
bisavós do leitor decoravam o decimonônico
soneto A Visita à Casa Paterna, de Luís
Guimarães Jr.:
Como a
ave que volta ao ninho antigo
Depois de longo e tenebroso inverno
Eu quis também rever o lar paterno
O meu primeiro e virginal abrigo.
E ao ser apresentada a pobre senhora de
nome Amélia, fatalmente terá de ouvir de algum
engraçadinho: "Ah, Amélia, você é que é a mulher
de verdade?", da antiga canção de Ataulfo Alves
e Mário Lago.
Futebol
Clichês à parte, a diversidade de possibilidades
de combinações, de escolha (Orwell) de expressões
reflete a riqueza da língua (e, portanto,
do pensamento) e permite comunicar de modo
mais abrangente a complexa realidade.
Pense-se, por exemplo, nas sutilíssimas
formas de um narrador de futebol relatar
o lance do pênalti. Entre os categóricos:
"Fulano foi derrubado na área: é pênalti!"
e "Fulano se jogou: não houve nada!", há
toda uma gama que permite expressar dúvidas
sem arriscar-se a ser processado pelo juiz
ou por um dos times.
Por exemplo, "o juiz marcou pênalti",
"deu pênalti" ou "viu pênalti" são diferentes:
o primeiro caso parece mais neutro, não
entrando no mérito; o segundo, parece indicar
que o juiz, de boa vontade, acabou interpretando
que aquele lance, que tinha aspecto de faltoso,
de fato o era; no terceiro, o pênalti foi
duvidoso ou inexistente, mas o juiz (e só
ele) viu pênalti ou, quem sabe, a visibilidade
privilegiada da posição do juiz permitiu-lhe
ver o pênalti que eu não vi. Aí dependerá
também do tom de voz e dos comentários contextualizantes.
Diferenças na linguagem, sutilezas
naturais, imprecisas e misteriosas. Se, pelo
contrário, chegarmos à precisão artificial
e à estreiteza da "novilíngua", ser-nos-á,
como em 1984, literalmente impensável um
pensamento dissidente ou divergente em relação
ao absoluto do Poder, qualquer que ele seja
"pelo menos - conclui Orwell - na medida
em que o pensamento depende das palavras"...
É pouco |
A popularidade dos diversificados
equivalentes do sentido dado à palavra "pouco"
encontrados no Google
|
Aplicação |
Expressão |
Ocorrência |
Prosa |
Um
dedo de... |
130
mil |
Cachaça |
Dois dedos de... |
768
mil |
Guloseimas |
Um
teco de... |
11.200 |
Visibilidade |
Um palmo (adiante do nariz) |
2.020 |
Voz |
Um
fio de... |
25
mil |
Infância |
Gostinho de... |
3.900 |
Álcool |
Gole de... |
29.900 |
Gente |
Pingo de... |
108
mil |
Sorte |
Bocadinho de... |
24.900 |
Mulher
atraente |
Pedaço de mau caminho |
18.900 |
Duração (de
sensação) |
Assomo de coragem |
584 |
|
Acesso de fúria |
19.600 |
|
Rompante de raiva |
72 |
|
Momento de indecisão |
3.270 |
Recursos |
Escassos recursos |
40.300 |
Diferença |
Sutil diferença |
69.700 |
Densidade
(do café) |
Café ralo |
2.470 |
Distância |
Beirando (o desespero) |
1.290 |
|
Às
raias da loucura |
4.690 |
|
Beirando a loucura |
850 |
Beirando a insanidade1.030 |
Entre o "POUCO" e o
"MEIO" no Google |
Um pouco chateado
|
43.100 |
Meio chateado
|
20.600 |
|
Um pouco sem graça
|
26.600 |
|
Meio sem graça
|
250 mil |
Um pouco louco
|
35.200 |
|
Meio louco
|
59.900 |
Um pouco chato
|
39.300 |
|
Meio chato
|
|
|
121 mil |
Um pouco desconfiado
|
6.900 |
|
Meio desconfiado
|
30.900 |
Um pouco puto
|
576 |
|
|
|
Meio puto
|
|
14.200 |
Um pouco besta
|
1.140 |
|
Meio besta
|
|
|
|
|
25.700 |
Um pouco veado
|
29 |
|
Meio veado
|
|
14.600 |
Um pouco desanimado
|
|
21.400 |
Meio desanimado
|
|
29.300 |
Um pouco desanimadão
|
|
0 |
Um pouco esquisitão
|
|
|
|
|
6 |
|
Meio esquisitão
|
|
947 |
Um pouco ressabiado
|
|
|
890 |
Meio ressabiado
|
5.730 |
|
|
|
|
|
Um pouco assim,assim
|
|
|
|
|
|
|
34 |
|
Meio assim,assim
|
|
1.980 |
|