[an error occurred while processing this directive] O que é que realmente eu tenho ? | Revista Língua Portuguesa
      
  



LAUAND, Jean . O que é que realmente eu tenho. Língua Portuguesa, v. 32, p. 36-39, junho 2008.

O que é que realmente eu tenho ?
Brasileiro bebeu em fonte africana e oriental para criar alternativa mais fraterna ao verbo "ter" que herdou da Península Ibérica

Luiz Jean Lauand

O importante filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997), em sintonia com os grandes fundadores do pensamento ocidental, nunca dissociou o filosofar da linguagem comum: por mais difíceis que sejam os raciocínios filosóficos, eles sempre se dão em e a partir de o conhecimento comum. Para quem segue Platão e os antigos, não cabe um filosofês, uma terminologia tipo bula de remédio, mas é a própria linguagem comum - essa que falamos e ouvimos todos os dias - que suscita o abalo filosófico: um olhar não-quotidiano sobre a realidade quotidiana (Pieper).

É o que Sócrates diz no Teeteto (175): o filósofo não está interessado em saber se o rei que tem muito ouro é feliz ou não, mas o que a felicidade é. A pergunta filosófica é: o que - em si e afinal - é isto (a felicidade, o amor, a justiça, o ter etc.)? (Pieper)

E quando chegamos a uma formulação como a de Agostinho: "feliz é quem tem aquilo que quer" estamos longe de dar o problema filosófico por concluído, pois ainda mais problemático é saber o que é ter, o que um homem realmente tem, e o que é, afinal, o querer. Sobre este último, há aquela sugestiva passagem do diálogo de Platão Górgias (467 b) na qual Sócrates discute com o jovem sofista Polo e afirma que os tiranos fazem o que lhes apraz mas não o que realmente querem:

"Mas não dizes, Sócrates, que fazem o que lhes apraz?"
"Sim, e continuo a sustentar o que eu disse."
"Então, fazem o que querem."
"Não, digo que não."
"Apesar de fazerem o que lhes apraz?... Defendes absurdos, Sócrates: verdadeiros disparates."
O que Sócrates pretende é mostrar que há quereres e quereres e, no fundo, só podemos querer realmente o bem.
E é o próprio Agostinho quem problematiza o "ter". Em seu sermão 112A, sobre a parábola bíblica do filho pródigo, chega o momento de comentar a sentença do pai ao filho mais velho: "Tudo que é meu é teu" e Agostinho pondera:

"Uma coisa é dizer 'meu servo'; outra, 'meu irmão'. Sempre que dizes 'meu', dizes com verdade, mas porventura é no mesmo sentido que o aplicas ao irmão e ao servo? É diferente o 'meu' em 'minha casa' e em 'minha mulher'; como não é o mesmo em 'meu filho', 'meu pai' e 'minha mãe'. Sim, dizes: 'meu Deus', mas será que este 'meu' é o mesmo que em 'meu servo'? Ou pelo contrário 'meu Deus' é 'meu Senhor'?" (Santo Agostinho, 112A,13)
 
Abalo filosófico
Assim, é no mistério escondido na realidade mais banal e quotidiana que se produz o abalo do ato filosófico, quando descobrimos que não sabemos aquilo que sabemos, ou melhor, como diz o próprio Santo Agostinho (a propósito do tempo): se ninguém me pergunta, sei o que ele é; se alguém me pergunta, não sei.

Mas como começar a responder às perguntas filosóficas? Qual o método para discutir esse "em si e afinal", suscitado pelas realidades quotidianas? Confiantes nos insights humanos encerrados na linguagem, os clássicos apostam na linguagem comum: ela costuma esconder informações importantes sobre a realidade. É o que faremos brevemente neste estudo, focalizando o caso do ter.

Como diz Agostinho, não é no mesmo e único sentido que digo "meu dinheiro", "meu amor", "meu carro", "meu Deus". Pieper problematiza a posse, com os versos orientais:

"Meu jardim",
disse o rico;
O jardineiro, sorriu...

Um primeiro fato interessante, sobre o nosso "ter" - que, ao contrário do inglês, alemão, francês ou italiano, que têm uma forma light correspondente ao latino habere - no português e no espanhol, "ter" deriva da forma antipática e agressiva do latim tenere: "segurar", "agarrar", "pegar"... (Houaiss), no mesmo sentido em que "garfo" em espanhol é tenedor: aquele que tem (e, infelizmente, não podemos contar com o particípio tenente, porque se especializou), segura e não larga.
 
Outras línguas
Felizmente, o português do Brasil criou uma forma mais amigável ao lado do "ter", ou mesmo substituindo-o. Mas antes vejamos outras formas possíveis para o ter.

O árabe tem três interessantes formas: li (ly, laka etc. lahum - tenho, tens..., têm); 'ndy ('ndaka... etc... 'ndahum) e ma'ay (ma'aka etc.). 

"Ana ly" ("eu tenho") traduz-se mais literalmente como "para mim" ou "há para mim": no Alcorão diz Lot:
"Ah, se eu tivesse força contra vós... Law ana ly bikum quwah..." (11, 80).
É este ly que Maria usa ao dizer "Como hei de ter um filho."  (3, 47).
E em "Os crentes, que fazem as boas obras, terão belo prêmio" (18, 2), o que se diz é que haverá para eles um belo prêmio.

Numa visão centrada na pessoa, "tenho" é aquilo que "há para mim": pouco me importa a Rita Lee como realidade "objetiva" (nascida em tal ano, CPF tal, RG tal...); passo a "tê-la" a partir do momento em que ela integra meu campo de relações: "ainda não havia para mim Rita Lee". Como me fez notar o professor Sylvio Horta, da USP, o brasileiro tem muito dessa visão pessoal e chega a dizer: "Minha Nossa Senhora!".

Também sem a posse-garfada é o ter-'ndy, junto a. Quando Muhammad deve dizer: "Não tenho o castigo que quereis apressar..." (7, 57) ou "Não vos digo que tenho os cofres de Allah" (7, 50), está expressando que não está "junto a", não dispõe, não pode acionar o castigo ou acessar os cofres. E, no Evangelho, para informar que os donos da festa "não têm vinho" (Jo 2, 3) para os convidados, Maria pode empregar a fórmula: "Layssa 'indahum hamr", não é que eles não têm vinho para si (lahum), não dispõem do vinho que, como anfitriões, deveriam ter ('indahum).

O "ter" alternativo
Na forma "para mim" (e também na "junto a mim") evidencia-se um outro sentido do "ter": "aquilo que me compete". Como no possessivo neutro castelhano: o diretor da escola pede ao professor que se encarregue de anotar atrasos do bedel e ele se recusa dizendo: "Perdón, soy profesor y lo mío es dar clases". Ou como dizia a canção de Joan Manoel Serrat, referindo-se à condição humana:

"Todo pasa y todo queda / pero lo nuestro es pasar / pasar haciendo camino".
É nesse sentido também a célebre exortação de Galvão Bueno: "Vai que é tua, Taffarel!" e a genial gíria brasileira: "Eu tô na minha" (restrinjo-me àquilo que me compete e não ultrapasso o que se espera de mim).

A terceira forma árabe ma'a - que coincide com a forma quimbundo kukala ni - nos leva a uma maravilhosa alternativa que o português do Brasil criou para "ter". Na vida comunitária africana, é muito menos acentuada a demarcação de posse. Como também, pelo amor, numa família, recai-se na sentença da parábola de Cristo: "Tudo que é meu, é teu". Certamente, na prática, há brigas entre os irmãos porque um pegou o que era do outro etc. Mas se tudo corre bem, numa família não são necessários tantos cadeados e chaves. E há, pelo menos uma ampla gama de objetos que são indiscutivelmente de todos: a tesoura, o guia da cidade, o grampeador, a pasta de dente... Para esses objetos, não teria sentido dizer "ter", mas kukala ni - "estar com": "Você está com a tesoura?" "Quem está com o guia da cidade?".

A linguagem brasileira estendeu essa fraternidade, substituindo em muitos outros casos o verbo "ter" pela locução "estar com" (o que não ocorre, nessa mesma extensão, nem em Portugal nem na Espanha):

"Você está com tempo?; está com febre?; está com pressa?; está com dinheiro?; está com carro?..." (o espanhol diria tienes tiempo, fiebre...).

O brasileiríssimo "estar com" é uma forma muito mais simpática, muito mais solta, pois aplica-se mais propriamente a "posses" casuais, as posses provisórias de algo que no fundo é tão meu quanto teu, ou melhor, é de todos nós.
Ao menos, no âmbito da linguagem...

Luiz Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

A Lição do "ter" Indiano

Se na própria raiz do nosso "ter" está a idéia de apegamento, de re-ter, de garfar, as línguas e as culturas orientais são mais leves: o grande filósofo português Paulo Ferreira da Cunha tem um sugestivo estudo sobre a tradição indiana e seu ideal de desapego, consubstanciado em contos, episódios e parábolas. Com o título de "Pensamento Indiano: inspirações e desafios", está publicado em Filosofia e Educação - o Ocidente e os Orientes (São Paulo, ESDC, 2006, pp. 21-22), por mim organizado. Recolho a seguir um par delas.

As disputas pela propriedade são a tal ponto o paradigma das querelas, que uma outra narrativa parece parodiar essa nossa afeição tão extremada pelo ter. 

A Discussão
Dois ioguins amigos de há muito caminhavam já na senda da renúncia. Mas parece que tiveram saudades das decerto amigáveis disputas que teriam tido outrora. Um propôs que discutissem, pois de há muito que o não faziam.

O outro assentiu.
Ora, de que se foi lembrar o ioguim a quem fazia falta a contenda? Precisamente que, por brincadeira e fingimento embora, disputassem pela propriedade.

Como nada mais de imediatamente exterior tivesse à mão, propôs que discutissem a propriedade de uma malga de arroz. E começou por afirmar a tese:

- Esta malga é minha!
O outro ainda replicou:
- Não, é minha.

Mas, decerto desconsolado por a disputa lhe não dar mais prazer, no estádio mais adiantado em que se encontrava, logo se dispôs a concordar:

- Tens razão, amigo, é mesmo tua.

A Querela
De partilha de maçãs se trata numa querela entre dois camponeses. Não chegam a acordo sobre a propriedade dos pomos que, de uma árvore com raízes no terreno de um, contudo caíram na propriedade do outro. Apelam para um brâmane sábio, que lhes pergunta:

" - Quereis um julgamento segundo os homens ou segundo Deus?"
Queriam a partilha segundo Deus.

" - Estais certos de que não reclamareis?" - volve o sábio.
Estavam certíssimos.

Então, ele faz dois lotes: num, está apenas uma maçã. Noutro, todas as demais. E à sorte, absolutamente à sorte, atribui um lote a um e outro a outro.

O suum cuique dos homens não é o dos deuses. Insondáveis os seus desígnios, e por isso falamos em sorte. Para designar muitas vezes o que não entendemos.

- Lutar com unhas e dentes
- A marcha das palavras
- A força das variantes
- As palavras do ano

 
 
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