O importante filósofo alemão
Josef Pieper (1904-1997), em sintonia com
os grandes fundadores do pensamento ocidental,
nunca dissociou o filosofar da linguagem
comum: por mais difíceis que sejam os raciocínios
filosóficos, eles sempre se dão em e a partir
de o conhecimento comum. Para quem segue
Platão e os antigos, não cabe um filosofês,
uma terminologia tipo bula de remédio, mas
é a própria linguagem comum - essa que falamos
e ouvimos todos os dias - que suscita o abalo
filosófico: um olhar não-quotidiano sobre
a realidade quotidiana (Pieper).
É o que Sócrates diz no Teeteto
(175): o filósofo não está interessado em
saber se o rei que tem muito ouro é feliz
ou não, mas o que a felicidade é. A pergunta
filosófica é: o que - em si e afinal - é
isto (a felicidade, o amor, a justiça, o
ter etc.)? (Pieper)
E quando chegamos a uma formulação
como a de Agostinho: "feliz é quem tem aquilo
que quer" estamos longe de dar o problema
filosófico por concluído, pois ainda mais
problemático é saber o que é ter, o que um
homem realmente tem, e o que é, afinal, o
querer. Sobre este último, há aquela sugestiva
passagem do diálogo de Platão Górgias (467
b) na qual Sócrates discute com o jovem sofista
Polo e afirma que os tiranos fazem o que
lhes apraz mas não o que realmente querem:
"Mas não dizes, Sócrates, que
fazem o que lhes apraz?"
"Sim, e continuo a sustentar o que eu disse."
"Então, fazem o que querem."
"Não, digo que não."
"Apesar de fazerem o que lhes apraz?...
Defendes absurdos, Sócrates: verdadeiros
disparates."
O que Sócrates pretende é mostrar que há
quereres e quereres e, no fundo, só podemos
querer realmente o bem.
E é o próprio Agostinho quem problematiza
o "ter". Em seu sermão 112A, sobre a parábola
bíblica do filho pródigo, chega o momento
de comentar a sentença do pai ao filho mais
velho: "Tudo que é meu é teu" e Agostinho
pondera:
"Uma coisa é dizer 'meu servo';
outra, 'meu irmão'. Sempre que dizes 'meu',
dizes com verdade, mas porventura é no mesmo
sentido que o aplicas ao irmão e ao servo?
É diferente o 'meu' em 'minha casa' e em
'minha mulher'; como não é o mesmo em 'meu
filho', 'meu pai' e 'minha mãe'. Sim, dizes:
'meu Deus', mas será que este 'meu' é o mesmo
que em 'meu servo'? Ou pelo contrário 'meu
Deus' é 'meu Senhor'?" (Santo Agostinho,
112A,13)
Abalo
filosófico
Assim, é no mistério escondido na realidade
mais banal e quotidiana que se produz o abalo
do ato filosófico, quando descobrimos que
não sabemos aquilo que sabemos, ou melhor,
como diz o próprio Santo Agostinho (a propósito
do tempo): se ninguém me pergunta, sei o
que ele é; se alguém me pergunta, não sei.
Mas como começar a responder
às perguntas filosóficas? Qual o método para
discutir esse "em si e afinal", suscitado
pelas realidades quotidianas? Confiantes
nos insights humanos encerrados na linguagem,
os clássicos apostam na linguagem comum:
ela costuma esconder informações importantes
sobre a realidade. É o que faremos brevemente
neste estudo, focalizando o caso do ter.
Como diz Agostinho, não é no
mesmo e único sentido que digo "meu dinheiro",
"meu amor", "meu carro", "meu Deus". Pieper
problematiza a posse, com os versos orientais:
"Meu jardim",
disse o rico;
O jardineiro, sorriu...
Um primeiro fato interessante,
sobre o nosso "ter" - que, ao contrário do
inglês, alemão, francês ou italiano, que
têm uma forma light correspondente ao latino
habere - no português e no espanhol, "ter"
deriva da forma antipática e agressiva do
latim tenere: "segurar", "agarrar", "pegar"...
(Houaiss), no mesmo sentido em que "garfo"
em espanhol é tenedor: aquele que tem (e,
infelizmente, não podemos contar com o particípio
tenente, porque se especializou), segura
e não larga.
Outras
línguas
Felizmente, o português do Brasil criou
uma forma mais amigável ao lado do "ter",
ou mesmo substituindo-o. Mas antes vejamos
outras formas possíveis para o ter.
O árabe tem três interessantes
formas: li (ly, laka etc. lahum - tenho,
tens..., têm); 'ndy ('ndaka... etc... 'ndahum)
e ma'ay (ma'aka etc.).
"Ana ly" ("eu tenho") traduz-se
mais literalmente como "para mim" ou "há
para mim": no Alcorão diz Lot:
"Ah, se eu tivesse força contra vós...
Law ana ly bikum quwah..." (11, 80).
É este ly que Maria usa ao dizer "Como
hei de ter um filho." (3, 47).
E em "Os crentes, que fazem as boas obras,
terão belo prêmio" (18, 2), o que se diz
é que haverá para eles um belo prêmio.
Numa visão centrada na pessoa, "tenho"
é aquilo que "há para mim": pouco me importa
a Rita Lee como realidade "objetiva" (nascida
em tal ano, CPF tal, RG tal...); passo a
"tê-la" a partir do momento em que ela integra
meu campo de relações: "ainda não havia para
mim Rita Lee". Como me fez notar o professor
Sylvio Horta, da USP, o brasileiro tem muito
dessa visão pessoal e chega a dizer: "Minha
Nossa Senhora!".
Também sem a posse-garfada é
o ter-'ndy, junto a. Quando Muhammad deve
dizer: "Não tenho o castigo que quereis apressar..."
(7, 57) ou "Não vos digo que tenho os cofres
de Allah" (7, 50), está expressando que
não está "junto a", não dispõe, não pode
acionar o castigo ou acessar os cofres.
E, no Evangelho, para informar que os donos
da festa "não têm vinho" (Jo 2, 3) para
os convidados, Maria pode empregar a fórmula:
"Layssa 'indahum hamr", não é que eles não
têm vinho para si (lahum), não dispõem do
vinho que, como anfitriões, deveriam ter
('indahum).
O "ter" alternativo
Na forma "para mim" (e também na "junto
a mim") evidencia-se um outro sentido do
"ter": "aquilo que me compete". Como no possessivo
neutro castelhano: o diretor da escola pede
ao professor que se encarregue de anotar
atrasos do bedel e ele se recusa dizendo:
"Perdón, soy profesor y lo mío es dar clases".
Ou como dizia a canção de Joan Manoel Serrat,
referindo-se à condição humana:
"Todo pasa y todo queda / pero
lo nuestro es pasar / pasar haciendo camino".
É nesse sentido também a célebre exortação
de Galvão Bueno: "Vai que é tua, Taffarel!"
e a genial gíria brasileira: "Eu tô na minha"
(restrinjo-me àquilo que me compete e não
ultrapasso o que se espera de mim).
A terceira forma árabe ma'a -
que coincide com a forma quimbundo kukala
ni - nos leva a uma maravilhosa alternativa
que o português do Brasil criou para "ter".
Na vida comunitária africana, é muito menos
acentuada a demarcação de posse. Como também,
pelo amor, numa família, recai-se na sentença
da parábola de Cristo: "Tudo que é meu, é
teu". Certamente, na prática, há brigas entre
os irmãos porque um pegou o que era do outro
etc. Mas se tudo corre bem, numa família
não são necessários tantos cadeados e chaves.
E há, pelo menos uma ampla gama de objetos
que são indiscutivelmente de todos: a tesoura,
o guia da cidade, o grampeador, a pasta
de dente... Para esses objetos, não teria
sentido dizer "ter", mas kukala ni - "estar
com": "Você está com a tesoura?" "Quem está com
o guia da cidade?".
A linguagem brasileira estendeu
essa fraternidade, substituindo em muitos
outros casos o verbo "ter" pela locução "estar
com" (o que não ocorre, nessa mesma extensão,
nem em Portugal nem na Espanha):
"Você está com tempo?; está com
febre?; está com pressa?; está com dinheiro?;
está com carro?..." (o espanhol diria tienes
tiempo, fiebre...).
O brasileiríssimo "estar com" é uma forma
muito mais simpática, muito mais solta, pois
aplica-se mais propriamente a "posses" casuais,
as posses provisórias de algo que no fundo
é tão meu quanto teu, ou melhor, é de todos
nós.
Ao menos, no âmbito da linguagem...
Luiz Jean Lauand é professor
titular da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo
A Lição do "ter"
Indiano
Se na própria raiz do
nosso "ter" está a idéia de apegamento, de
re-ter, de garfar, as línguas e as culturas
orientais são mais leves: o grande filósofo
português Paulo Ferreira da Cunha tem um
sugestivo estudo sobre a tradição indiana
e seu ideal de desapego, consubstanciado
em contos, episódios e parábolas. Com o título
de "Pensamento Indiano: inspirações e desafios",
está publicado em Filosofia e Educação -
o Ocidente e os Orientes (São Paulo, ESDC,
2006, pp. 21-22), por mim organizado. Recolho
a seguir um par delas.
As disputas pela propriedade
são a tal ponto o paradigma das querelas,
que uma outra narrativa parece parodiar essa
nossa afeição tão extremada pelo ter.
A Discussão
Dois ioguins amigos de
há muito caminhavam já na senda da renúncia.
Mas parece que tiveram saudades das decerto
amigáveis disputas que teriam tido outrora.
Um propôs que discutissem, pois de há muito
que o não faziam.
O outro assentiu.
Ora, de que se foi lembrar o ioguim a quem
fazia falta a contenda? Precisamente que,
por brincadeira e fingimento embora, disputassem
pela propriedade.
Como nada mais de imediatamente
exterior tivesse à mão, propôs que discutissem
a propriedade de uma malga de arroz. E começou
por afirmar a tese:
- Esta malga é minha!
O outro ainda replicou:
- Não, é minha.
Mas, decerto desconsolado por
a disputa lhe não dar mais prazer, no estádio
mais adiantado em que se encontrava, logo
se dispôs a concordar:
- Tens razão, amigo, é mesmo
tua.
A Querela
De
partilha de maçãs se trata numa querela entre
dois camponeses. Não chegam a acordo sobre a
propriedade dos pomos que, de uma árvore com
raízes no terreno de um, contudo caíram na
propriedade do outro. Apelam para um brâmane
sábio, que lhes pergunta:
" - Quereis um julgamento segundo
os homens ou segundo Deus?"
Queriam a partilha segundo Deus.
" - Estais certos de que não
reclamareis?" - volve o sábio.
Estavam certíssimos.
Então, ele faz dois lotes: num,
está apenas uma maçã. Noutro, todas as demais.
E à sorte, absolutamente à sorte, atribui
um lote a um e outro a outro.
O suum cuique dos homens não
é o dos deuses. Insondáveis os seus desígnios,
e por isso falamos em sorte. Para designar
muitas vezes o que não
entendemos.