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A cortada de Gustavo:
com a popularização do esporte, até expressões
das quadras ganharam o país, como "levantar
a bola" |
Boa parte da atração exercida pelos esportes
e pelos jogos, tema oportuno agora que as
Olimpíadas de Pequim ainda estão fresquinhas
na memória, reside no fato de que, de algum
modo, representam a vida e diversos de seus
aspectos.
Daí também a grande quantidade de metáforas
esportivas. Metáforas presentes até na Bíblia:
São Paulo compara os esforços requeridos
pela vida cristã aos dos atletas e corredores
que almejam o primeiro prêmio (I Cor. 9:
24 e ss.). No século 19, ante o preconceito
de certas igrejas contra o esporte ("culto ao
corpo", desrespeito ao "dia do Senhor" etc.),
esse "aval" do apóstolo era esgrimido por
cristãos esportistas, que invocavam esse
versículo da Epístola aos Coríntios (daí o
famoso time inglês Corinthian, que teve seu nome
adotado na fundação do nosso
Corinthians).
Já no primeiro tratado de xadrez do Ocidente,
o Libro del ajedrex, composto (a partir dos
tratados árabes) por D. Alfonso o Sábio,
em 1283, os jogos aparecem como metáforas
da vida. Nessa obra, a invenção do xadrez
é atribuída a um concurso que um rei teria
feito precisamente para premiar o sábio que
apresentasse um jogo que melhor representasse
a condição humana.
Naturalmente, o xadrez aparece como modelo
trazido pelo candidato que acreditava "que
mais vale a inteligência do que a sorte,
pois quem se guia pelo juízo inteligente faz
suas coisas ordenadamente e, mesmo que perdesse
não teria culpa, pois estaria agindo segundo
modo conveniente"; enquanto outro sábio, que
considerava a sorte como fator preponderante,
apresentou o jogo de dados;
etc.
Popularidade
Dentre todos os nossos referenciais lúdicos
de metáforas, evidentemente, de longe é o
futebol que ocupa o primeiríssimo lugar,
sem competidor próximo. Para expressar situações
de nossa vida profissional, empresarial,
escolar, familiar, amorosa etc. é a centenas
de situações do futebol que recorremos.
Assim, se alguém tem o domínio
de uma situação, "está com a bola toda".
Se a pessoa comete uma falha grosseira, "pisou
na bola"; mas se teve um bom desempenho,
"deu show de bola". Os exemplos são inúmeros
(ver página 24).
Enquanto outros jogos praticamente
fornecem só metáforas prefixadas, a força
psicológica do futebol é tanta que permite
improvisar metáforas em situações novas,
como, digamos, a de um vendedor que se queixa
a seu gerente que o colega lhe deu "um carrinho
por trás" e efetuou indevidamente uma venda
a um cliente que era dele; o acusado pode
defender-se replicando que "foi na bola"
ou que era " bola dividida"; enquanto o primeiro
vendedor insistirá que foi "carrinho sem
bola", "agressão fora do lance" etc.
Naturalmente, esse domínio do
futebol decorre do enorme interesse que desperta
em toda a população, que, desse modo, dispõe
de um vivo e riquíssimo código alternativo
de comunicação. Curiosamente, muitas metáforas
procedem de campos que despertam, hoje,
muito pouco interesse nos falantes: se,
digamos, o vôlei e o basquete atraem muito
mais interessados, não são páreo, no entanto,
para o turfe, o bilhar ou o boxe. A razão
talvez esteja na particular configuração
destes, que produz potencialmente situações
de metáfora; além de ter a seu favor, uma
tradição estabelecida numa época na qual
eram mais populares e pouca gente se interessava
por vôlei ou basquete.
Eleições
Mesmo pessoas que não acompanham corridas
de cavalos intuem que as emoções do turfe
emparelham com as de outras disputas da vida
(recorde-se o famoso tango Por una Cabeza)
e falam normalmente que, digamos, nas eleições
municipais de São Paulo, a disputa está
entre Alckmin, Kassab e Marta, e Maluf corre
por fora (o mesmo Maluf que antes de o PT
chegar à presidência dizia que o PT não era
"cavalo de chegada") ou é um azarão. Se Alckmin
e Kassab se aliassem, a eleição seria uma
"barbada" etc. Enfim, é páreo duro e só na reta
final é que se saberá qual candidato cruzará o
disco de chegada. Claro que me refiro aos
candidatos dos partidos grandes, porque os
outros não pagam placê.
Naturalmente, com o PSDB dividido,
Alckmin, que é a bola da vez para ser fritado,
está numa sinuca de bico e Serra, que só
confia no seu taco, deu uma grande tacada
ao emprestar-lhe um apoio mais para formal.
Aliás, ele já tinha cantado essa jogada nas
eleições presidenciais: era óbvio que era
Lula que estava na boca da caçapa. (note-se
que "cantar a jogada" é expressão originária
do snooker, que adaptou-se também ao jargão
futebolísitico).
Seja como for, Alckmin sempre
prefere o nocaute a jogar a toalha: o que
denota notável falta de jogo de cintura:
ainda mais com tantos pesos pesados da política
paulista na disputa. Maluf, que mesmo quando
está nas cordas, nunca acusa o golpe, será
que vai usar nos debates a técnica do clinch
e a de aplicar sutilmente golpes baixos...?
Curiosamente, do vôlei e do basquete,
quase não há, entre nós, metáforas: procurando
no Google, encontrei uma ou outra do tipo:
"não gostei da entrevista dos Nardoni no
Fantástico: o repórter só levantava a bola
para eles cortarem". E, quando, após infrutíferas
buscas por imagens do basquete, finalmente
encontrei um comentário - no Portal G1 da
Globo - de que certo produto da Amazon:
"pode até não ser uma cesta de três pontos,
mas é no mínimo uma bela enterrada", mas
tratava-se de tradução de um artigo do New
York Times...
Entre as escassas contribuições
de outros campos, encontram-se o "grid de
largada" e a "pole position" (digamos, para
a "corrida" eleitoral); a "ginga" da capoeira
(que dispõe de um riquíssimo léxico, mas
é muito esotérica para transcender o âmbito
dos iniciados e atingir a grande massa) ou
o "estar em xeque" do xadrez.
Imaginação
O xadrez
medieval (para não falar do árabe...),
responsável pela transformação da palavra
"partida" em sinônimo de jogo (ver quadro na
página 23), dá a chave para a compreensão da
tendência a criarmos metáforas a partir dos
jogos e competições esportivas: a imaginação.
Ao contrário do xadrez moderno, que
consideramos como mera estrutura lógica; na
Idade Média, o jogo era visto como excitantes
manobras de guerra (por exemplo, a torre que,
tal como a torre que sitiava o inimigo, só
podia mover-se horizontal ou verticalmente;
os pobres peões, que sucumbiam em grande
quantidade na batalha etc.), de política
de Estado, de vida etc. E o vemos utilizado
em muitas pregações religiosas da época (o
peão que é promovido ao chegar à oitava casa
e se enche de soberba; os maus bispos, que
se movem na diagonal por interesses escusos
e oblíquos, etc.).
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Jadel Gregório, promessa
que ficou só em sexto lugar no salto triplo:
apesar do fiasco do Brasil nos Jogos, olimpíada
renovou uso de termos esportivos no
cotidiano |
Mas a medalha de ouro vai para
a imaginação oriental, tão poderosa que chega
muitas vezes a pensar a realidade como metáfora
(para o Alcorão, cada coisa no mundo é um
sinal de Deus) e, até mesmo, a metáfora
como realidade. No extremo desse caso, entre
as célebres Rubaiyat (literalmente: "quadrinhas")
de Omar Khayyam encontramos esta preciosidade:
"Para falar claramente e sem
metáforas [!?)] / Somos as peças do xadrez
jogado pelo Céu / Que brinca conosco no
tabuleiro do ser / E depois... voltamos,
um por um, à bolsa do Nada."
A imaginação popular está de
prontidão para dar vida à metáfora esportiva.
Não será preciso chegar à próxima Olimpíada
para perceber isso.
METÁFORAS
BRASILEIRAS |
Sentido |
Expressão |
Favorecer |
Levantar a bola (vôlei) |
Ser vencido arrasadoramente |
Ir a nocaute (boxe) |
Dar-se por vencido |
Jogar a toalha (boxe) |
Capacidade de adaptação |
Ginga (capoeira), Jogo de cintura
(boxe) |
Momento decisivo |
Xeque-mate (xadrez) |
Centro das atenções |
Bola da vez (sinuca) |
Impasse |
Sinuca de Bico |
Buscar alternativa |
Correr por fora (turfe) |
Dificuldade |
Páreo duro (turfe) |
Hipótese confiável |
Barbada
(turfe) |
IMAGENS
DO FUTEBOL |
Sentido |
Expressão |
Tem o domínio de uma situação |
está com a bola toda |
Comete uma falha grosseira |
Pisou na bola |
Teve um bom desempenho |
Deu show de bola |
Identifica-se com os ideais da
instituição |
Veste a camisa |
Aposenta-se |
Pendura as chuteiras |
Busca o bem da empresa e não aparecer |
Joga para o time |
Recorre à lei para prevalecer sem razão |
Quer ganhar no tapetão |
É retraído e não se mostra como é |
Está na retranca |
Leva os subalternos a orientação
superior |
Faz o meio de campo |
Tem experiência |
Tem cancha |
Fracassa no namoro por falta de
iniciativa |
Quem não faz,
toma |