Para além das
discussões sobre gramática, norma culta, língua
"brasileira", qualidade do ensino etc., é
fato evidente que a linguagem comum, sobretudo
a falada pelo jovem, tem sofrido transformações
ao longo dos anos. Pode-se avaliar esse fato
de diversos modos: desde os que, apocalipticamente,
o deploram, como signo inconteste da ação
deletéria da prevalência da imagem sobre
a escrita, até - no extremo oposto - os que
o vêem com bons olhos: como natural evolução
e progresso.
Seja como for, é
necessário, antes de mais nada, identificar
em que consistem essas transformações. Uma
experiência interessante, nesse sentido,
é-nos oferecida pela publicação de uma mesma
história em quadrinhos ao longo das décadas:
com os mesmos desenhos, mas com o texto adaptado
ao leitor, em cada época.
Nesses textos, o
autor / adaptador tem uma única preocupação:
a de ser compreendido imediatamente por seu
jovem leitor, em cada caso. Dispomos assim,
de algum modo, de um referencial concreto
para avaliar as mudanças da linguagem. Um
referencial limitado e longe de ser absoluto,
mas um referencial.
É o que faremos
aqui, de modo apenas indicativo, comparando
os textos das diversas edições da HQ Tio
Patinhas e os Índios Nanicós, desde o
de seu surgimento no Brasil, em abril de
1958, até a mais recente versão, a de dezembro
de 2004, considerando também (naturalmente,
com menor ênfase) as edições intermediárias
de 1967, 1982 e 1988.
Tio Patinhas e
os Índios Nanicós
é uma
dessas clássicas criações de Carl Barks, o gênio
da Disney, pai de personagens como Patinhas
e Professor Pardal. Barks é um clássico,
que une narrativas dinâmicas a um desenho
magistral, numa combinação cômica inigualável.
Sua obra continua sendo uma permanente fonte
de inspiração para significativas discussões,
sobretudo para a educação de nosso tempo,
que busca referenciais concretos para a
interdisciplinaridade e temas transversais.
História
histórica
Há exatos 50 anos,
em 1956, antes de que se falasse em ecologia, no
sentido que viria a ser dominante, com
referência à poluição industrial considerada
em contexto político, "green" interest
etc. - e nem sequer estava difundida a palavra
"poluição", Barks cria a HQ Land of the
Pigmy Indians, logo traduzida e publicada
no Brasil.
O enredo é
simples: Tio Patinhas já não suporta a poluição
de Patópolis (poluição, aliás, que suas
indústrias criaram) e compra do corretor Chicão
uma imensa área desabitada na região dos Grandes
Lagos no Norte, onde possa manter-se em
contato com a natureza, longe de qualquer
indústria e inclusive despreocupar-se da
guarda de seu rico dinheirinho, pois lá não
há ninguém para o roubar.
Para a primeira
visita a essas suas terras, vai acompanhado de
Donald e dos sobrinhos. Naturalmente, o instinto
de lucro é tão forte que, uma e outra vez,
Patinhas terá suas recaídas e ficará pensando
constantemente em como explorar industrialmente
os minérios e recursos naturais desse seu
paraíso ecológico.
Ocorre, porém, que
as terras não são desabitadas: nelas vivem -
como os patos descobrirão aos poucos - uma tribo
de pigmeus, os índios nanicós. Esses índios,
verdadeiros donos das terras desde tempos
imemoriais, não se deixam enganar por Patinhas.
Capturam os patos e impõem a Donald o desafio
de vencer a principal ameaça para a tribo:
o monstruoso peixe, rei esturjão.
Donald, com a
ajuda dos sobrinhos, acaba vencendo a fera,
atingindo-a com o venenoso "óxido de
estrombôlio" (preparado com os minérios
extraídos por Patinhas). Embora agradecidos, os
desconfiados nanicós, diplomaticamente,
"expulsam" os patos: na festa de celebração da
amizade, oferecem a Patinhas o cachimbo da
paz ocultamente abastecido com o "óxido de
estrombôlio". Patinhas, sob o impacto da
ação do veneno, é levado de volta para Patópolis
e nunca mais quer ver as terras dos índios
do cachimbo fatal.
Diferenças
A história ocupa
27 páginas, num total de 208 quadrinhos. Na
criação dos personagens nanicós, Barks declara
ter se inspirado no poema A Canção de
Hiawatha, do norte-americano Henry Wadsworth
Longfellow. Assim, os nanicós falam sempre
em versos rimados e são capazes também de
conversar com os animais, seus poderosos
aliados contra os patos.
Voltemos aos fatos
de linguagem.
Em números
anteriores de Língua, temos analisado como nossa
língua perdeu recursos do latim, como é o
caso do neutro ou da voz média. Perdeu também
declinações, a flexão do final da palavra
latina que indica se ela exerce, por exemplo,
a função de sujeito (rosa), objeto
direto (rosam), adjunto adnominal
restritivo (rosae) etc.; em português
é só rosa e ponto. Encontramos resquícios
das declinações latinas nos pronomes (tu,
te, ti etc.), mas mesmo esses vestígios estão
desaparecendo ("Vida leva eu"
etc.).
Certamente seria
exagerado dizer que está se formando atualmente
uma nova língua no lugar do português, mas,
sem dúvida, não são de menor importância
transformações do português realmente falado
no Brasil de hoje (sobretudo pelo jovem...),
como o atual processo de supressão (fática)
do subjuntivo (ou da distinção
subjuntivo/indicativo). O que se ouve é: "Se
você quer que eu vou, eu vou...". E o mais grave
é que essa supressão (gramatical) corresponde
a uma supressão de distinção de categorias
mentais: a abolição da distinção entre o
real em ato e o simplesmente possível ou
desejado...
Algumas
mudanças do tipo fazem as diferenças das
falas dos personagens de Tio Patinhas
e os Índios Nanicós, nas cinco edições
publicadas entre 1958 e 2004, como vemos
ao longo destas páginas.
Jean
Lauand é professor
titular da Faculdade de Educação da
USP