[an error occurred while processing this directive] O laboratório de Patinhas | Revista Língua Portuguesa
      

  



LAUAND, Jean . O laboratório de Tio Patinhas - as mudanças da linguagem em cada geração, julho 2006. Revista Língua Portuguesa, , v. I, 9, p. 18 - 23, 

O laboratório de Patinhas
As mudanças de linguagem da história da Disney publicada ao longo de meio século

por Jean Lauand

Para além das discussões sobre gramática, norma culta, língua "brasileira", qualidade do ensino etc., é fato evidente que a linguagem comum, sobretudo a falada pelo jovem, tem sofrido transformações ao longo dos anos. Pode-se avaliar esse fato de diversos modos: desde os que, apocalipticamente, o deploram, como signo inconteste da ação deletéria da prevalência da imagem sobre a escrita, até - no extremo oposto - os que o vêem com bons olhos: como natural evolução e progresso.

Seja como for, é necessário, antes de mais nada, identificar em que consistem essas transformações. Uma experiência interessante, nesse sentido, é-nos oferecida pela publicação de uma mesma história em quadrinhos ao longo das décadas: com os mesmos desenhos, mas com o texto adaptado ao leitor, em cada época.

Nesses textos, o autor / adaptador tem uma única preocupação: a de ser compreendido imediatamente por seu jovem leitor, em cada caso. Dispomos assim, de algum modo, de um referencial concreto para avaliar as mudanças da linguagem. Um referencial limitado e longe de ser absoluto, mas um referencial.

É o que faremos aqui, de modo apenas indicativo, comparando os textos das diversas edições da HQ Tio Patinhas e os Índios Nanicós, desde o de seu surgimento no Brasil, em abril de 1958, até a mais recente versão, a de dezembro de 2004, considerando também (naturalmente, com menor ênfase) as edições intermediárias de 1967, 1982 e 1988.

Tio Patinhas e os Índios Nanicós
é uma dessas clássicas criações de Carl Barks, o gênio da Disney, pai de personagens como Patinhas e Professor Pardal. Barks é um clássico, que une narrativas dinâmicas a um desenho magistral, numa combinação cômica inigualável. Sua obra continua sendo uma permanente fonte de inspiração para significativas discussões, sobretudo para a educação de nosso tempo, que busca referenciais concretos para a interdisciplinaridade e temas transversais.

História histórica

Há exatos 50 anos, em 1956, antes de que se falasse em ecologia, no sentido que viria a ser dominante, com referência à poluição industrial considerada em contexto político, "green" interest etc. - e nem sequer estava difundida a palavra "poluição", Barks cria a HQ Land of the Pigmy Indians, logo traduzida e publicada no Brasil.

O enredo é simples: Tio Patinhas já não suporta a poluição de Patópolis (poluição, aliás, que suas indústrias criaram) e compra do corretor Chicão uma imensa área desabitada na região dos Grandes Lagos no Norte, onde possa manter-se em contato com a natureza, longe de qualquer indústria e inclusive despreocupar-se da guarda de seu rico dinheirinho, pois lá não há ninguém para o roubar.

Para a primeira visita a essas suas terras, vai acompanhado de Donald e dos sobrinhos. Naturalmente, o instinto de lucro é tão forte que, uma e outra vez, Patinhas terá suas recaídas e ficará pensando constantemente em como explorar industrialmente os minérios e recursos naturais desse seu paraíso ecológico.

Ocorre, porém, que as terras não são desabitadas: nelas vivem - como os patos descobrirão aos poucos - uma tribo de pigmeus, os índios nanicós. Esses índios, verdadeiros donos das terras desde tempos imemoriais, não se deixam enganar por Patinhas. Capturam os patos e impõem a Donald o desafio de vencer a principal ameaça para a tribo: o monstruoso peixe, rei esturjão.

Donald, com a ajuda dos sobrinhos, acaba vencendo a fera, atingindo-a com o venenoso "óxido de estrombôlio" (preparado com os minérios extraídos por Patinhas). Embora agradecidos, os desconfiados nanicós, diplomaticamente, "expulsam" os patos: na festa de celebração da amizade, oferecem a Patinhas o cachimbo da paz ocultamente abastecido com o "óxido de estrombôlio". Patinhas, sob o impacto da ação do veneno, é levado de volta para Patópolis e nunca mais quer ver as terras dos índios do cachimbo fatal.

Diferenças

A história ocupa 27 páginas, num total de 208 quadrinhos. Na criação dos personagens nanicós, Barks declara ter se inspirado no poema A Canção de Hiawatha, do norte-americano Henry Wadsworth Longfellow. Assim, os nanicós falam sempre em versos rimados e são capazes também de conversar com os animais, seus poderosos aliados contra os patos.

Voltemos aos fatos de linguagem.

Em números anteriores de Língua, temos analisado como nossa língua perdeu recursos do latim, como é o caso do neutro ou da voz média. Perdeu também declinações, a flexão do final da palavra latina que indica se ela exerce, por exemplo, a função de sujeito (rosa), objeto direto (rosam), adjunto adnominal restritivo (rosae) etc.; em português é só rosa e ponto. Encontramos resquícios das declinações latinas nos pronomes (tu, te, ti etc.), mas mesmo esses vestígios estão desaparecendo ("Vida leva eu" etc.).

Certamente seria exagerado dizer que está se formando atualmente uma nova língua no lugar do português, mas, sem dúvida, não são de menor importância transformações do português realmente falado no Brasil de hoje (sobretudo pelo jovem...), como o atual processo de supressão (fática) do subjuntivo (ou da distinção subjuntivo/indicativo). O que se ouve é: "Se você quer que eu vou, eu vou...". E o mais grave é que essa supressão (gramatical) corresponde a uma supressão de distinção de categorias mentais: a abolição da distinção entre o real em ato e o simplesmente possível ou desejado...

Algumas mudanças do tipo fazem as diferenças das falas dos personagens de Tio Patinhas e os Índios Nanicós, nas cinco edições publicadas entre 1958 e 2004, como vemos ao longo destas páginas.












Jean Lauand é professor titular da Faculdade de Educação da USP



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