Filosofia
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Outubro/2013


Filosofia

As camadas geológicas

Obra de 1651 dá dimensão a fatos obsoletos a que ainda fazemos referência por meio da linguagem

Por Jean Lauand

A dinâmica própria da linguagem comum vai incorporando expressões novas - em geral, agudas tiradas, felizes metáforas ou humoradas formulações - que passam a integrar o falar quotidiano de milhões de usuários, porque caem como uma luva para atender às necessidades de comunicação.

Mas, com o passar do tempo, a metáfora ou a expressão ficam, mas pode acontecer que seu fato-base seja esquecido ou tenha se tornado obsoleto. Muitas expressões que hoje continuam vivas perderam completamente o contato com a realidade que as inspirou. E os falantes continuam usando-as de modo mais ou menos inconsciente e opaco. O esquecimento da etimologia é parte do jogo da linguagem - como faz notar Drummond, nem reparamos que o imposto se chama imposto porque é uma coisa imposta (se fosse opcional, quem pagaria...?).

Calhambeque
Em 1964, Roberto Carlos em O Calhambeque cantava "Mandei meu Cadillac pro mecânico outro dia" e todos sabiam que o modelo Cadillac da época era um carro arrojado, de luxo e glamour, conversível e com traseiro chamativo (apelidado de "rabo de peixe"). E quando Rita de Cássio Coutinho assumiu o nome artístico Rita Cadillac o público entendia muito bem o porquê. Hoje, provavelmente os jovens devem imaginar que Cadillac seja o nome de família da Rita...

Não é de estranhar também que muitas de nossas expressões procedam de meio rural - a população rural só deixou de ser predominante no final dos anos 60 - e de épocas atrasadas de tecnologia. Se, nos anos 40, 70% dos brasileiros viviam em área rural, hoje, mal chegam a 15%. Muitas das expressões e metáforas surgidas naquela época (e antes) refletem as condições de então: da vida do campo, anterior à televisão, com o rádio pouco difundido, maiores índices de analfabetismo etc. E assim, por exemplo, gente que nunca ordenhou - ou talvez sequer tenha visto uma vaca de perto - diz tranquilamente que o técnico do time ou a equipe de Fórmula 1 estão "escondendo o leite", metáfora que não faz parte da vivência da imensa maioria de falantes urbanos de 2013.

Adágios
Na obra de 1651, de Antonio Delicado, Adagios Portuguezes Reduzidos a Lugares Communs, encontramos muitas expressões que usamos ainda hoje, embora sem vivenciar as situações que eram familiares para os falantes de então. É o caso, por exemplo de:

"Confundir alhos com bugalhos" - quem em São Paulo já viu bugalhos?
"Estar cheio de nove horas" durante muitos séculos, sem iluminação elétrica etc., seguia-se o imperativo de Delicado: "Às nove, deita-te e dorme", tornando a proximidade das nove um limite para qualquer atividade (a visita que diz: "devo ir, já são quase nove horas").

"A torto e a direito" - segundo Delicado, de um jeito ou de outro: "A torto e a direito, nossa casa até o tecto [teito]".
Etc. etc. etc. (cf. http://www.hottopos.com/vdletras4/jeans2.htm#_ftnref50)
Continuamos dizendo que "O castigo vem a cavalo", expressão vinda dos tempos em que o cavalo era um rápido meio de transporte, e hoje a metáfora seria descabida e é mesmo incompreensível para os jovens. Em uma página de perguntas do Yahoo, M. N. pergunta precisamente: "O que significa dizer: o castigo vem a cavalo?" (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20080522104006AAw7roo) e entre as respostas encontramos disparates como: "o castigo virá rápido, devastando, e derrubando e pisando em tudo!"; "o castigo que ele nunca vem desacompanhado. Mesmo depois de recebermos o castigo, ainda continuamos sofrendo com as suas sequelas". 

A vapor
E o mundo todo continua medindo a potência em cavalos (motor 220 cavalos do carro tal). As expressões de energia e velocidade ainda, por vezes, nos remetem a épocas anteriores: "a todo vapor", "de vento em popa", "não sou movida a eletricidade" (dizia minha avó, contemporânea do aparecimento dessa energia, quando o marido exigia pressa); lava jato (quando do aparecimento dessas máquinas, o avião a jato era o expoente da velocidade); para não falar dos foguetes, turbinados etc. que, um dia, tornar-se-ão obsoletos. Curiosamente, a energia atômica encontra resistências para ser usada nessas metáforas: talvez pelo fato de que sua primeira aparição (ao contrário da energia elétrica) já esteve associada a morte e destruição.

Pode ser uma interessante proposta, em sala de aula, os professores discutirem a etimologia e as camadas geológicas de nossa linguagem. 



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