Filosofia
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Maio/2013


Religião

A guerra de linguagens na Cúria Romana

Papa Francisco terá de lidar com o peso de séculos de tradições rançosas, que contaminam a expressão de ideias da Igreja

Por Jean Lauand

O padre Raniero Cantalamessa, franciscano capuchinho, orador da Casa Pontifícia desde 1980, na pregação da Sexta-feira Santa (sua primeira a serviço do novo papa) evocou a missão reformadora de São Francisco e o caráter deletério da excessiva burocracia: uma implícita, mas dura, referência às disfunções (ou escândalos que teriam motivado a renúncia de Bento XVI) da pesada máquina do Vaticano, a Cúria Romana. Não faltaram sequer referências a Kafka: o mensageiro que não consegue apregoar a mensagem do rei morto e o castelo...

"Temos de fazer todo o possível para que a Igreja nunca se pareça ao castelo complicado e assombroso descrito por Kafka, e para que a mensagem possa sair dela tão livre e alegre como quando começou a sua corrida. Sabemos quais são os impedimentos que podem reter o mensageiro: as muralhas divisórias, começando por aquelas que separam as várias igrejas cristãs umas das outras; a burocracia excessiva; os resíduos de cerimoniais, leis e disputas do passado, que se tornaram, enfim, apenas detritos.

"Em Apocalipse, Jesus diz que ele está à porta e bate (Ap 3:20). Às vezes, como foi observado por nosso papa Francisco, não bater para entrar, mas batendo de dentro porque ele quer sair. Sair para os 'subúrbios existenciais do pecado, o sofrimento, a injustiça, ignorância e indiferença à religião, de toda forma de miséria.'

"Acontece como em certas construções antigas. Ao longo dos séculos, para adaptar-se às exigências do momento, houve profusão de divisórias, escadarias, salas e câmaras. Chega um momento em que se percebe que todas essas adaptações já não respondem às necessidades atuais; servem, antes, de obstáculo, e temos então de ter a coragem de derrubá-las e trazer o prédio de volta à simplicidade e à linearidade das suas origens. Foi a missão que recebeu, um dia, um homem que orava diante do crucifixo de São Damião: 'Vai, Francisco, e reforma a minha Igreja'" (http://bit.ly/10Fid5W).

Não se trata só nem principalmente do excesso de pessoal - Elio Gaspari conta que certa vez perguntaram a João XXIII quantas pessoas trabalhavam na Cúria, e ele disse: "A metade" - mas do ranço milenar dos bastidores do poder eclesiástico, ele mesmo tão incorporado que já se tornou uma forma de linguagem...

Linguagem
Com seus 2 mil anos de existência, a Igreja Católica - ao menos em seus documentos oficiais - está muito atenta às sutilezas da linguagem...

Para a Cúria Romana não é a mesma coisa trocar "seis" por "meia dúzia", afinal em certos contextos, como quando se diz: "Não é por causa de meia dúzia de cafajestes que vamos proibir o torcedor de ir ao estádio", a formulação equivalente seria: "Não é por causa de três ou quatro cafajestes...": ambas indicam quantidade ínfima; enquanto "seis" poderia dar ideia de um bando composto exatamente por 6 elementos.

Com mais de 1 bilhão de fiéis e bagagem histórica, não é de estranhar que os documentos da Igreja sejam produzidos com relativa lentidão e inúmeros trâmites do sistema burocrático da Cúria Romana.

Por considerarem que já haviam passado mais de 400 anos desde a publicação do último Catecismo da Igreja Católica (o do Concílio de Trento, em 1566), em 1992 foi lançado mundialmente um novo Catecismo, como preparação para a edição definitiva, em 1997.

Novo catecismo
João Paulo II, na Constituição Apostólica Fidei Depositum, conta que o novo Catecismo foi inicialmente redigido por sete bispos, supervisionados por uma comissão de 12 cardeais e bispos, recebendo, em sucessivas redações, sugestões de peritos e bispos de todo o mundo.

Sobre esse texto (aqui abreviado para C-92), uma nova comissão, só com membros da Cúria Romana (sob a presidência do então cardeal Ratzinger), corrigiu a versão provisória e preparou o texto definitivo de 1997 (confira a carta apostólica Laetamur Magnopere de João Paulo II), a C-97.

O original de C-92 foi publicado em francês e o de C-97, em latim; em cada caso, as conferências episcopais aprovaram traduções para seus países (daí que, por exemplo, as traduções brasileira e portuguesa sejam ligeiramente diferentes).

Para que a edição definitiva, C-97, não se afastasse da estrita ortodoxia, a Cúria fez 99 emendas ao texto de C-92, para eliminar as formulações divergentes contidas naquela "versão beta". Analisamos alguns aspectos da linguagem dessas emendas nos quadros destas páginas, principalmente, exemplos da parte III do Catecismo (pontos 1.691 a 2.557), dedicada à moral.

Em se tratando de moral, as propostas das religiões oscilam entre polos: a consciência do fiel (valorizada pelo concílio Vaticano II) e o estabelecimento de normas operacionais.

Havia, na antiga doutrina da Igreja, a salutar virtude da Prudência, glorificada por um Santo Tomás de Aquino (1225-1274) como a principalíssima entre as virtudes cardeais. Classicamente, a Prudência (hoje, na prática, ausente na pregação eclesiástica e desvirtuada semanticamente) era a virtude - portanto uma qualidade intransferível da pessoa - que levava o homem a um reto discernimento da realidade em cada caso e a tomar decisões acertadas em seu agir.

O esquecimento, na pregação eclesiástica, da Prudência e a inversão de seu significado ("prudência", hoje, não é a virtude da decisão que leva à grandeza moral, mas uma egoísta e interesseira cautela) favorecem a minuciosa codificação da moral. Em casos extremos dessa atitude surgem os fundamentalismos.

Fundamentalismo
Fundamentalismo é "retranca", que não quer deixar nada ao discernimento do fiel, sempre considerado imaturo, e pretende garantir a salvação por meio de mil regrinhas, que regulam o comportamento em seus mínimos detalhes. Nessa linha, o regime Talibã chegou a criar um "Ministério do Vício e da Virtude", que legislava até sobre a posição dos vasos sanitários (não podiam estar alinhados com Meca) e elaborava listas sobre o que as torcidas podiam gritar nos estádios de futebol... (para não falar dos trajes femininos etc.).

Passados séculos da Inquisição, as alterações de C-92 para C-97 mostram que a linguagem ainda é objeto de vigilância para a Cúria Romana. O modo como o papa Francisco lidará com as palavras (não só na mídia, mas em documentos e posicionamentos decisivos) vai revelar se a história continua ou um novo começo se anuncia.

Homossexualidade "inata"?

O ponto 2.358 de C-92 trazia uma formulação sobre homossexualidade que recebeu cortes na versão definitiva (C-97)

COMO ERA
"Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais inatas  profundamente radicadas. Não são eles que escolhem sua condição homossexual..."

COMO FICOU
"Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas..."

O sentido da mudança é explicitado por um site tradicionalista católico espanhol, que protestou contra o enunciado de C-92: "Se são 'inatas' e 'não são eles que escolhem sua condição homossexual', que culpa eles têm? E dizer que eles não escolhem sua condição é enfrentar a Sagrada Escritura."
(
http://radiocristiandad.wordpress.com/2008/07/23/la-novedad-en-lo-novedoso/)

 
A culpa da masturbação

Versões distintas do Novo Catecismo mostram tendências católicas em conflito de linguagem

Nas edições espanholas do Catecismo, mudanças de C-92 para C-97 aparecem ainda mais acentuadas. É o caso do ponto 2.352, no qual C-92 indicava a necessidade de levar em conta na avaliação moral da masturbação diversos fatores psíquicos ou sociais "que reduzem e até anulam a culpa moral"; formulação que, em C-97, foi substituída.

COMO ERA
"que reducen, e incluso anulan  la culpabilidad moral"

COMO FICOU
"que pueden atenuar o tal vez  reducir al mínimo la culpabilidad moral".

A introdução do "podem" é de efeito psicológico, pois uma vez que são subjetivos os fatores atenuantes ("imaturidade afetiva, força dos hábitos contraídos, o estado de angústia ou outros fatores psíquicos ou sociais"), sua função parece ser só a de manter a sensação de culpa (o fiel não pode excluir a culpa, autoavaliando fatores subjetivos).

Afinal, a própria existência do sacramento da confissão, em diálogo vivo entre penitente e confessor, pressupõe que a culpabilidade moral não é medida por "pontos na carteira", como infrações de trânsito, que vão de gravíssimas a leves.

A culpa moral pertence ao delicado âmbito da consciência e não pode ser observada com a operacionalidade de um radar que fotografa uma invasão de faixa de pedestres.

Como fica o problema pastoral da absolvição? De 1992 a 1997, havia fatores psíquicos ou sociais que podiam anular a culpa da masturbação; desde 1997 já não: o fiel deve, então, confessar seus "não pecados" da época, que passaram a ser pecados?

 
O contexto do aborto

Uma nada sutil correção na parte referente à Doutrina da Fé, no ponto 336 do Novo Catecismo

COMO ERA
"Desde a infância até à morte, a vida humana é acompanhada pela sua assistência".

COMO FICOU
"Desde o seu começo até à morte, a vida humana é acompanhada pela sua assistência [dos anjos]".

A troca de "infância" por "começo", em C-97, ajusta-se melhor à doutrina do mesmo Catecismo, que diz:

"2270. A vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, a partir do momento da concepção...";

"2274. Uma vez que deve ser tratado como pessoa desde a concepção, o embrião terá de ser defendido na sua integridade...".

 
Mais precisão à Virgem Maria

Mudança sutil de palavra no ponto 2.853 torna mais específica a doutrina da Igreja

COMO ERA
"[Maria], por obra do Espírito Santo, é libertada do pecado".

COMO FICOU
"[Maria], por obra do Espírito Santo, é preservada do pecado".

Esta correção interessante apoia-se na não equivalência entre "libertada" e "preservada"; esta mais restrita e inequívoca (Maria nunca esteve em pecado...).

 
A vida concreta da mentira

Mais uma sugestiva mudança, a introduzida no ponto 2.483, também dirigida a evitar abusos por parte dos fiéis
 
COMO ERA
"Mentir é falar ou agir contra a verdade para induzir em erro aquele que tem o direito de conhecê-la."

COMO FICOU
"Mentir é falar ou agir contra a verdade para induzir em erro."

Farisaísmos à parte, é óbvio que o cidadão não está obrigado a falar a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade, digamos, a um ladrão que invade sua casa, encosta um revólver calibre 38 em sua testa e pergunta se ele tem dólares escondidos ou filhas na casa...  A própria Igreja não censuraria como mentira as reservas mentais que levariam a responder: "Não!" (enquanto pensa: "não tenho dólares 'escondidos': eu sei muito bem onde estão 'guardados' meus US$ 50 mil"). Ou aquele caso, que parece piada: toca o telefone, a mulher atende "Boa noite, Fulano"; o marido (Fulano é um importuno) sussurra e gesticula: "Diga que eu não estou!" Ante os escrúpulos cristãos da esposa que se recusa a "mentir", ele abre a porta do apartamento, sai dois passos e sussurra: "Agora você já pode dizer que eu não estou!".

 


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