Etimologia
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Janeiro/2013


Turismo

O choque cultural da linguagem

Na fala e no comportamento, o brasileiro ainda é um enigma a ser decifrado por outros povos

Por Jean Lauand e Chie Hirose


Nas semanas que antecederam o Mundial de Clubes da Fifa, em dezembro, a nação corintiana sentiu na pele que mais difícil do que chegar a um torneio dessa dimensão é o desafio de o brasileiro adaptar-se, mesmo que por poucos dias, ao antípoda geográfico e, sobretudo, cultural.


Preocupado com os imensos problemas (diplomáticos, policiais etc.) que os cerca de 20 mil torcedores que foram ao Japão poderiam sofrer, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil publicou um manual, o Guia do Torcedor (www.consbrasil.org/evento/GuiaTorcedor.pdf), facilitando informações básicas para orientar o "bando de loucos" e adverti-los do risco de ignorar as vigências do país que os recebe.


Formas verbais
Apesar do que digam as torcidas adversárias do Corinthians, a cautela não se aplica propriamente à Fiel, mas aos hábitos de linguagem de todo brasileiro. Orientações turísticas europeias costumam lembrar ao visitante estrangeiro no Brasil, por exemplo, que ele não se espante com o grau de intimidade brasileira ante desconhecidos, que os faz beijarem e abraçarem estranhos já no primeiro contato de uma apresentação formal.


E, embora a afetividade e o calor humano sejam virtudes muito brasileiras, nossas formas verbais nem sempre parecem adequadas a olhos estrangeiros. Eles se chocam, por exemplo, com o hábito brasileiro de colocar o "eu" em primeiro lugar numa enumeração: "Eu e Fulano ganhamos o prêmio", "Eu e Beltrano vamos fazer tal coisa".


O hábito é tão arraigado que torna incompreensível para nós uma piada do personagem Chaves:


Chaves - Eu e o Quico estamos brincando de esconde-esconde...


Professor Girafales - Chaves, não é assim que se diz, mas: "O Quico e eu estamos brincando de esconde-esconde..."


Chaves - O senhor também está brincando de esconde-esconde com o Quico?


E nossa forma de manifestar apreço por uma visita que se despede não é, no fundo, polida. Dizemos "Vê se aparece!" (com o que - consciente ou inconscientemente - parecemos afirmar: "Nós somos pessoas muito importantes, interessantes, bonitas... e autorizamos você - que não é nada disso... -, a vir nos ver...").


Já o árabe despede-se da visita dizendo: Ismah lana nashufak! = "Permita que nós o vejamos" (você é a pessoa importante).


Generalizações
Certamente, é problemática a generalização "o brasileiro" (ou "o japonês", "o alemão", "o norte-americano", etc.). Quando aqui a utilizamos é com o suposto das mil ressalvas metodológicas impostas pela antropologia. Na prática, ao falarmos desses "tipos", é no sentido, mais potável cientificamente, de vigencia (Ortega), aquilo que "se da por supuesto" no convívio social: o que se deve e se pode (ou não) fazer; o que é aceito ou não por uma sociedade.


Um exemplo é o daquele colega coreano, que admitiu a dificuldade, nos primeiros tempos de Brasil, para conseguir seu breakfast: onde conseguir peixe e arroz em um país no qual a vigência alimentar impôs até o nome de "café da manhã" à primeira refeição. Finalmente adaptado, hoje saboreia sua média com pão e manteiga, disponíveis a rodo em qualquer padaria da esquina.


Sempre tendo em conta as ressalvas metodológicas, falemos de "o brasileiro" e de "o japonês", nosso anfitrião no Mundial da Fifa. Contando com a benevolência do leitor, ainda aplicaremos a esses "tipos" nacionais (às vigencias nacionais), a tipologia de David Keirsey, um instrumento de análise do renomado psicólogo americano, originalmente desenvolvido para classificação de temperamentos de indivíduos...


Tipologias
Keirsey, que modifica as ferramentas teóricas dos Tipos Psicológicos de Jung, trabalha com 4 pares de preferências, que dão origem a 4 tipos de temperamento.


Assim, seguindo as abreviaturas de Keirsey, o brasileiro é fundamentalmente P, enquanto o japonês é tipicamente J. A oposição J/P corresponde à preferência pelos procedimentos estabelecidos, determinados, agendados, previstos, planejados, fechados (J) em oposição ao easygoing, aberto, indeterminado, que configura a preferência P.


Só com enunciar esse par keirseyano, já se vê imediatamente que o jeitinho brasileiro tem um componente essencial no fator P. Daí que a abertura do Guia para brasileiros no Japão tenha sido já uma advertência:


"O japonês não lança mão de artifícios para resolver problemas. Não existe o ''jeitinho brasileiro'' no Japão. Os transportes são pontuais, os hotéis só atendem com reserva e os restaurantes não mudam seus pratos a gosto do cliente."


Outro par, F/T, é também distintivo: o brasileiro propende fortemente ao F; o japonês, ao T. F é a tendência a abordar as situações a partir de uma perspectiva pessoal, afetiva, priorizando laços emotivos que nos ligam às pessoas envolvidas no contexto; enquanto T é a abordagem fria e objetiva, impessoal, na qual prevalece a norma e não as condições pessoais dos envolvidos. É a outra metade essencial do jeitinho.


Laços emotivos
Os clássicos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda já há muito apontaram esse caráter F do brasileiro (para o bem e para o mal) e algumas de suas manifestações em nosso modo de falar, algumas compartilhadas com Portugal.


O uso e abuso dos diminutivos, transbordando afetividade: até nossos mais famosos criminosos e contraventores são Fernandinho, Carlinhos, Marcinho e os sangrentos espetos da churrascaria nos oferecem fraldinha, maminha, coraçãozinho, lombinho...


A colocação do artigo antes do nome próprio ("Me chama o Roberto", "Encontrei a Fabiana"); ou a substituição afetiva do nome pela primeira sílaba ("Me chama o Rô", "Encontrei a Fa"). A ênfase pessoal, proibida pela gramática em Portugal, na colocação do pronome oblíquo ("Me chama o Roberto", em vez de "Chama-me o Roberto). Também a encantadora locução "estar com", que o brasileiro inventou para substituir o duro e frio "ter": Você está com tempo?; está com dinheiro?; está com o carro? (em vez de: "Tens tempo?", "Tienes tiempo", etc.).


Ao P e F, juntem-se as preferências keirseyanas E, de extroversão (em oposição ao caráter reservado e zeloso pela privacidade do japonês) e S (de ater-se à realidade fática) e teremos o quadro completo do caráter explosivo da presença da corintianada no Japão.


Claro que há cativantes e inegáveis virtudes no ESFP (o tipo keirseyano do "brasileiro"): o proverbial calor humano que permeia nossas relações, a alegria, a espontaneidade, a generosidade e, para o bem e para o mal, a informalidade e a irresistível vocação lúdica, etc.


Esperteza
O problema é que há disfunções típicas nesse perfil, a começar pelo pouco senso de privacidade: o brasileiro expõe suas preferências e até o nome dos filhos em adesivos do carro; fala no celular de seus problemas familiares em alto e bom som, sem se importar com o fato de estar rodeado de desconhecidos; e é capaz de abrir sua intimidade com o primeiro que senta a seu lado no metrô, como se mostra no recente romance Entre o trem e a plataforma, de Lucimar Mutarelli (editora Prumo, 2012).


Já no Japão, não se fala ao celular em transportes coletivos, ninguém se expressa ruidosamente em público e o apreço pela privacidade leva os leitores a encaparem os livros que leem no ônibus, trem ou metrô. É a oposição entre o "exibido" e o "reservado".


Outra disfunção do ESFP, chocante, no caso, é a tendência a ser "folgado", a resolver tudo com "esperteza". Imaturidade, irresponsabilidade e impulsividade são outras disfunções que Keirsey aponta como próprias de nosso tipo SP.

Se no Brasil nossas vigências legitimam muito dessa expansividade brincalhona, no Japão, território T e F, não funciona. Daí que, por via das dúvidas, o Guia advirta:

"Evite falar alto nos transportes públicos, batucar [sic] ou tocar qualquer tipo de instrumento. Você pode ser retirado do local."  
Por detrás da seriedade do Guia do brasileiro no Japão e suas advertências, pressente-se um toque do lúdico brasileiro em seu autor (há impagáveis ícones, como o que instrui o torcedor a não pular em cima dos assentos do estádio), bem na linha do genial samba Estatutos da Gafieira (1954), de Billy Blanco:


"Moço, olhe o vexame / O ambiente exige respeito / Pelos estatutos da nossa gafieira / Dance a noite inteira, mas dance direito / Aliás, pelo artigo 120 / O distinto que fizer o seguinte: / Subir nas paredes / Dançar de pé pro ar / Morar na bebida sem querer pagar / Oi, abusar da umbigada de maneira folgazã / Prejudicando hoje o bom crioulo de amanhã / Será distintamente censurado".

Essa aparência de formalismo (as rebuscadas "firulas, floreios e rapapés" do bacharelismo a que se refere o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal) é parte do humor de certas piadas, assim revestidas de "caráter oficial", de "credibilidade", que potenciam a zoada e fazem a vingança da informalidade destes trópicos:


"Embora o Brasil seja um Estado Laico, a CNBB conseguiu aprovar um novo feriado religioso: Porcus Tristis" (alusivo ao rebaixamento do Palmeiras)";


"- Você viu que o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, o Ibama, está processando a Mancha?


- Ah é, por quê?


- Porque está extinguindo gambás e bambis".


Formalismo
A crua clareza do Guia é necessária ante o temor de nossas autoridades diplomáticas:


"O Consulado não pode assumir dívidas de brasileiro, emprestar dinheiro, pagar a contratação de advogados, retirar detidos das delegacias e prestar informações de natureza turística ou de serviços".


A boa zoada não é ostensivamente agressiva, mas disfarça-se de cordialidade e, com um toque de lúdico, tal como na nova forma de mandar tomar no c&: "Ei, Fulano, vai tomar...". Não se trata do insulto furioso, mas de uma ocasional lembrança. O treino acabou, o técnico já está indo embora, os jogadores o chamam: "Professor, ei professor..." (como que para adverti-lo, por exemplo, de que esqueceu o celular ou a toalha). Ele para, dá marcha a ré, abre o vidro e ouve: "Ei, professor, vai...".



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