Dezembro/2012
"A forma como o Milton compõe: essa mistura do ultrabrasileiro, daquela região..., de Minas (...) com as letras, com aquela consciência, com aquela voz..." (Arquivo N, GloboNews, 22-8-12).
O universal, o clássico, a partir da mineiridade... É bem o que ocorre com uma de suas mais geniais canções: Yauaretê (Milton + Fernando Brant), do álbum de mesmo nome, também celebrando data marcante: 25 anos. Canção nem sempre lembrada, pouco compreendida, mas de assombrosa genialidade.
Yauaretê
Ao focar a palavra tupi jaguaretê (como o faz Guimarães Rosa, em conto), Milton + Brant atingem o próprio centro da problemática antropológica e ética, clássica do Ocidente e, a seu modo, dos Orientes. Trata-se do problema da compreensão do próprio ser do homem e sua realização. Tal concepção pode resumir-se na memorável formulação do poeta Píndaro, lá vão 500 a.C.: "Torna-te o que és!". A sentença recolhe, da forma enxuta, um conceito-chave para o pensamento grego: a areté.
Para os propósitos deste breve espaço, areté poderia ser traduzida por "virtude", mas, por diversas razões (como a falta do uso vivo dessa palavra: quem de nós a ouviu ou a falou recentemente?), os tradutores preferem vertê-la por "excelencia" do ser. A excelência, o máximo, superlativo do ser de algo: areté no golfe é Tiger Woods; areté de atacante é Neymar em dia inspirado; areté de cavalo não se encontra em um pangaré qualquer, mas no ímpeto do cavalo árabe.
O caso torna-se problemático quando o pensamento grego - com Sócrates e Platão - indaga pela areté do homem. Sal que é sal, salga; centroavante que é centroavante, mata; homem que é homem... o quê?
Areté
Nestes 2.500 anos de antropologia e filosofia moral não chegamos nem perto de uma resposta cabal sobre a areté do homem, o que é natural nas questões filosóficas.
Seja como for, há - em diversas culturas - algumas constantes: a afirmação de que a moral se enraíza no ser - e até com ele se confunde - é uma convicção universal. Bem entendido, o ser em processo de busca dessa excelência; daí Tomás de Aquino falar da virtude como o máximo que se pode ser e o filósofo alemão contemporâneo Josef Pieper tenha resumido o ideal da virtude/areté como "processo de autorrealização": selbstverwirklichungsvorgang. (Nem é preciso dizer que, em nenhum caso, essa areté é pensada como algo exclusivamente do eu individual, à margem do outro; pelo contrário, a autorrealização passa pela abertura e sempre vige a conhecida sentença de Ortega y Gasset: "Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo".)
A afirmação da areté como ideal moral não é apanágio da filosofia, mas encontra-se em diversas instâncias: é o sentido profundo do "To be or not to be" shakesperiano (that is the question...), encontra-se na Comédia de Dante, na tradição confuciana; do "Torna-te..." de Píndaro às tournures da língua tupi...
Na Divina Comédia (Purg. XXIII, 31-33), ao tratar da recomposição do ser desfigurado pelos desvios morais, encontramos este enigmático terceto:
Pareciam-lhes os olhos anéis
sem gemas
E quem no rosto dos homens
lê "homem"
Bem poderia reconhecer o M
Que significa este misterioso M? (emme rima com gemme). O sentido dos versos é que a ação injusta atenta contra o ser de quem a pratica, desfigura-o, rouba-lhe o to be, o rosto humano - poeticamente figurado, em concretismo, na palavra "OmO" (omo em latim significa "homem").
Também para Confúcio - e a tradição do Extremo Oriente, registrada não só em seus tratados sapienciais, mas enraizada nas línguas - a moral é o ser homem (ren, em chinês / jin, em japonês; e a virtude da humanidade também é ren, cujo ideograma se obtém por uma como que "duplicação" do ideograma ren-homem, ou seja um homem a dois: aberto para o outro), e o imoral (fei-ren) é o não homem, como plasticamente indica o ideograma da negação e da falsidade, da desestruturação desde dentro, da desagregação, anteposto ao ideograma ren homem.
Tupi
Curiosamente essas ideias fundamentais (da excelência, do máximo, do ser ou não ser...) são encontradas na sabedoria do tupi. Ensinam as gramáticas que o superlativo em tupi constrói-se pelo sufixo -eté ajuntado a um termo. Assim, se jaguar designa diversos animais, de cachorro a onça, jaguareté é a "onça máxima", a mais feroz. Tal como a areté grega, o sufixo -eté significa não só o superlativo, mas aquele que é de verdade.
Já o contrário de -eté faz-se com o sufixo -rana, cujo significado é o de: parecido, no sentido de falhado, fracassado, o que parece mas não é. O oposto de -eté. Se jaguareté é a onça por excelência, jaguarana é um cãozinho medroso que foge de gato... Ibi-eté é a terra boa e fértil; ibirana, a estéril: parece terra, mas falta-lhe a virtude de terra.
Ora, para o tupi - que usa o sufixo eté como intensivo, superlativo e índice de verdade ontológica - o homem bom moralmente é aba-eté, o homem de verdade, que se aproxima da areté de homem. Enquanto o homem imoral é aba-ran, pseudo-homem.
Ser Milton
O drama ético-existencial transcende o âmbito da filosofia acadêmica e atinge a arte popular, na genial canção de Milton. Na inspiradíssima letra, o homem dialoga com a onça yauaretê, a onça Maria, pedindo-lhe - a ela que já atingiu a areté de seu ser-onça: jaguar-eté - que lhe ensine o correspondente ser-homem.
Ser onça de verdade, onçar superlativamente é, na comparação, fácil; trata-se apenas de: pegar, sangrar, lutar, matar... Mas, e eu que sou homem? Que devo fazer para ser abaeté? Onça Maria, me ensina a ser realmente o que sou; me mostra meu mundo, quero ter a luz, me ensina a viver meu destino e descobrir quem era que eu sou...
Daí que outro grande gênio, Tom Jobim, preferisse o apelido de Jaguaretê para Milton, em vez do muito menos expressivo (embora consagrado) Bituca: "Meu Yauaretê, minha onça verdadeira. Você é o rei da floresta, rei da mata brasileira. Meu Taquaraçu de espinho, meu carioca mineiro. Meu amor e meu carinho. Uiarapuru verdadeiro. O amador de passarinho".
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Em composições como Yaguaretê, Milton Nascimento reaviva uma desconfiança antiga de muitos filósofos, a de que a moral se enraíza no ser - e, por consequência, nas línguas. Na Divina Comédia, Dante registrou poema em que reconhece a feição humana na própria grafia do latim omo (homem). E Confúcio - seguindo a tradição do Extremo Oriente - dizia que a moral é o ser homem, o que seria refletido pelas palavras para "ser humano" (ren, em chinês / jin, em japonês: a virtude da humanidade também é ren, cujo ideograma se obtém por uma "duplicação" do ideograma ren-homem, um homem a dois: aberto para o outro), enquanto o imoral (fei-ren) é o não homem, como plasticamente indica o ideograma da negação e da falsidade, da desestruturação desde dentro, da desagregação, anteposto ao ideograma ren homem |
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