Novembro/2012
Comecemos pela palavra "cara" (como veremos, superampla, mas preferentemente referindo-se a homens). À primeira vista, esgota-se no verbete do Houaiss: "Indivíduo qualquer; sujeito, pessoa". Ou na do Aurélio: "Pessoa que não se conhece. Indivíduo; sujeito."
Mas, as surpresas logo surgem, a primeira delas é a apontada por ambos os dicionários: salta-se do indeterminado "pessoa que não se conhece" para "forma de tratamento com familiaridade" (Aurélio) e "interlocutório pessoal" (Houaiss): "Cara, com você posso me abrir...". E buscas no Google (25-5-12) de "Cara, eu te amo" e "Eu te amo, cara", somadas, superam 1 milhão de resultados!
Polivalência
"Cara" pode referir-se ao próprio falante, deliberando com seus botões, falando a si mesmo: "Não costumo dar esmola, mas ao ver aquela miséria, eu disse: Cara, vou dar um dinheiro". Contradições se sucedem: "cara" tem um lado pejorativo, de tirar solenidade e importância a pomposas autoridades e trazê-las de volta ao mundo dos comuns, como no caso da adolescente da publicidade: "Leio o Estadão porque o cara que prepara o vestibular também lê". Na Idade Média, se os cardeais demoravam (em ocasiões, meses) para eleger um papa, deixavam os caras a pão e água para que o Espírito Santo os iluminasse...
Por outro lado, "cara" é o autor de proezas: "O cara é o único brasileiro profissional de beisebol nos EUA". E "o cara" é o melhor, o cara que vai e resolve! Neymar é o cara.
Mas "cara" é também protagonista de casos exóticos, esquisitos, inusitados: "Meu, o cara come cachorro quente com chantilly!" ou "O cara é capaz de beber uma latinha de cerveja de um gole só".
Jornal Nacional
Mesmo nesses casos, a linguagem escorreita do Jornal Nacional se recusa a usar o vocábulo, até em situações nas quais ele seria o mais indicado. A edição de 27 de abril, por exemplo, trouxe reportagem sobre um inglês falsificador de pintores célebres, que, após um ano de cadeia, regenerou-se e hoje o cara ganha muito mais vendendo legalmente suas cópias de quadros famosos. Qualquer brasileiro que relatasse o fato diria "cara", mas William Bonner optou pelo correspondente menos vulgar, e um tanto antiquado, "sujeito" (para não ir ao arcaico "camarada"): "Marcos Losekann traz o caso de um sujeito...". Buscando no Google (26-5-12) "esse sujeito" temos 320 mil resultados; 3,5% dos 8,8 milhões de "esse cara"!
"Cara" é usado também para o caso padrão, o um qualquer, o uno do espanhol: "O cara para ir daqui até o Rio paga R$ 42 de pedágio".
O diminutivo "carinha" (/nego ou neguinho) cabe melhor em situações desfavoráveis: "O ônibus estava tão cheio, que tinha carinha saindo pela janela"; "Rolou tanta cachaça, que tinha carinha vomitando direto". Também em casos de pretensão descabida de um "sujeitinho metido": "O carinha errou todas e continuava se achando o Messi". Ou outras más qualidades: sujeitinho/carinha atrevido, egoísta, nojento etc.
Sendo "cara" muito amplo, em algumas ocasiões restringimos para indeterminados menos indeterminados: "os homens" (ou "os home", "os homi"), para o adversário do futebol: "Putz, gol dos home!"; para a polícia, fiscais do rapa, etc.
Já no jargão da polícia, o indeterminado para marginais ou suspeitos é "o elemento". Menos ofensivo, mas ainda no negativo, está "o indivíduo": "Basta você parar num semáforo e já vem um indivíduo pedir" ou "Estacionamos e aí já apareceu um indivíduo oferecendo-se para tomar conta do carro".
Neutralidade
Mais neutro, cabe também "um fulano" (com as devidas variações em fulana, fulaninho, fulaninha): "Eu estava andando no centro e vi um fulano sendo assaltado".
Já "mulher", como vocativo, pode expressar a visão (talvez preconceituosa) do homem que se dirige à companheira: "Presta atenção e dirige direito, mulher!". Ou: "Dá para parar com esse ciúme histérico, mulher!". Outros vocativos convocam a assumir a postura própria da classe, torcida, partido, corporação: "Que que é isso, companheiro?" (militante trotskista tomando Coca-Cola!); "Atitude, mano!" (Gavião tem de sair na porrada com a Mancha) etc.
Muito usado antigamente era "o cristão", em casos que requeriam virtudes como a paciência: "Não há cristão que aguente".
Para o brasileiro, campeão de eufemismo, "moço", e o feminino "moça" ou "menina" (com quase 50 anos de carreira, ainda hoje se fala em "as meninas" do Quarteto em Cy), pode designar uma pessoa qualquer, não necessariamente jovem... Ou algum serviçal: "Ih, a bateria arriou, minha neta, sobe e chama o moço da portaria". Ou o mais formal, já em desuso: "Um cavalheiro deixou este envelope para você".
Indeterminação
Indeterminado, designando um qualquer, está também "o cidadão": "Já pedi mil vezes para me tirar da lista, mas o cidadão continua me enviando e-mails de publicidade".
Para tirar o foco do eu, o que poderia parecer interesseiro, pode-se usar o indeterminado "os outros" aplicado a si mesmo, com a aparência de reivindicar justiça geral. Assim, diz o marido que dá um tranco no fulano que mexeu com sua esposa: "Isso é para você aprender a se engraçar com a mulher dos outros" (nada pessoal...). Ou a aluna, queixando-se para a "tia", do Joãozinho, da carteira de trás: "Professora, o Joãozinho está dando tapa na orelha dos outros". Ou com aspecto ainda mais genérico, mas determinadíssimo: "Professora, tem gente dando tapa na orelha dos outros".
Se "tia" é mais a professora, "tiozinho" é o "senhor de idade", mais para pejorativo, o antigo "véinho". "Filho" ou "filha" não se limitam a descendentes de seus pais. Podem ser dirigidos a alunos ("Filha, muda de lugar ou vou ter de pedir a você que entregue sua prova!"), clientes jovens etc. Já "velho" pode ser usado para o pai: o próprio ou o do interlocutor: "E aí, seu velho já liberou o sítio? Ô meu, já me deu a chave do carro?" Pode ser forma de tratamento de camaradagem, dado mesmo a quem não seja idoso: "Barbaridade, velho: a média da turma foi 4,0!".
Nessa dialética tão a gosto do brasileiro, estão outros usos do impessoal que se torna pessoal: se o francês diz on ("En Espagne on dine rarement avant 22 heures"), aqui prevalece "você", para que o interlocutor sinta de modo pessoal a situação de que fala: "Na Espanha, você não janta antes das dez".
A aproximação pessoal dá-se em nossos usos de "gente". Na Espanha, la gente indica a pluralidade genérica; no português o uso (como no Hino da Independência "Brava gente brasileira..." ou em Camões: "A grita se alevanta ao céu, da gente") dá lugar a outro, carregado de sentido pessoal, como no vocativo, que evoca incredulidade, ante a falta de virtude humana: "Gente! Que crueldade fizeram com a criança!", no qual cabe o recurso ao transcendente para corroborar o espanto: "Gente do céu!". A pluralidade anônima de la gente é pessoalizada em "minha gente"; na ocupação do lugar dos pronomes de 1ª pessoa: "eu" (como na queixa do motorista da madame: "Pôxa, a gente se esforça para agradar e a patroa ainda reclama da gente"); "nós outros" ("Por que não vem jantar com a gente?") e "nós todos" ("Bem que a gente podia se reunir mais").
E, aparentemente no sentido contrário, o tratamento pessoal por formas genéricas, neutras, que parecem ampliar a dignidade ou o âmbito do interlocutor: "E aí, chefia..." ("chefia" é mais geral, amplo, indeterminado que o concreto "chefe"); "Ô, malandragem, vê aí um misto quente..."; "Firme aí, simpatia?", "Vai com calma, amizade!". Etc.
Mesmo o genericíssimo "a pessoa", pode indicar apenas "eu", como nos esquetes de Maria Clara Gueiros e Nelson Freitas: Márcia e o corno Leozinho do humorístico Zorra Total (Rede Globo). O esquema era fixo: ela, flagrada em evidente situação de oferecer-se a outros homens, acabava convencendo o marido ("Contornei...") de que tudo não passava de um mal-entendido: "Não, meu amor, você entendeu mal... Os peões da obra estavam comprimidos em volta de mim porque era um piquete e eu estava ajudando as reivindicações deles. Pôxa, a pessoa não pode lutar por justiça social que já é mal interpretada".
Pessoal
Já "pessoinha" presta-se a ser o modo afetivo de referir-se a fofas crianças, bebês (mesmo ainda os nascituros) ou até animais: "Não chama a Sissi de cachorro, ela não sabe que é cachorro; ela pensa que ela é uma pessoinha".
Imagine a perplexidade de um turista japonês ou suíço ouvindo um típico telefonema comercial em que se misturam formas adocicadas de tratamento com palavrões. O Chicão, da loja de ferramentas, fala com Mendonça, seu fornecedor: "... Já sei, meu querido, mas o pedido veio errado, car%$#@! Eu tinha encomendado cinco grosas do sextavado e vocês me mandaram do outro... Não, meu bem, eu só preciso do hexagonal: sextavado, porra!... Você me troca ainda hoje? Tá obrigado, abração, meu querido".
Difícil é fazer a gringalhada entender essas e outras sutilezas de nossa língua; afinal, pelo menos algum requinte o brazuca tinha de ter.
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