Linguagem
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Agosto/2012


Linguística cognitiva

O diplomata da língua árabe

Tradutor do Alcorão para o português brasileiro mostrou como conhecer o pensamento de uma sociedade pelo estudo de seu idioma

Aida Hanania e Jean Lauand


Em 2012, celebramos duas importantes datas redondas, em torno de um único personagem, marco importante, fundacional, dos estudos árabes entre nós: o 90º aniversário do professor Helmi Nasr, que há exatos 50 anos fundou o Curso de Língua e Literatura Árabe na USP.


Nasr é autor de um pioneiro dicionário árabe-português, da tradução para o árabe de Novo Mundo nos Trópicos, de Gilberto Freyre, e da monumental tradução, única em nossa língua feita diretamente do árabe, do Alcorão (ou do "sentido" do Alcorão, como querem os muçulmanos, pois, para eles, o livro sagrado é indissociável da língua árabe), com preciosas notas. Esse trabalho, entre tradução e revisões pela Liga Islâmica Mundial em Meca, durou 22 anos e foi finalmente publicado em 2005, pelo "Complexo do Rei Fahd", a instância mais oficial do Islã.


Sua carreira como homem de paz e integração (dois dos significados do radical árabe s-l-m, de palavras tão fundamentais como islam ou salam) foi coroada em 2007, quando passou a integrar o seleto grupo (de 21 membros) do Conselho dos Sábios, instância máxima de eruditos da Liga Islâmica Mundial.


Universidade
A USP hoje, prestes a completar 80 anos, era, em 1962, uma universidade muito jovem de um país que, instalado em séculos de atraso, começava a viver, então, grandes mudanças econômicas e culturais. A imagem que o brasileiro tinha do mundo árabe era muito diferente na época: não se falava de islamismo nem de muçulmanos, não havia nada parecido com o protagonismo exercido hoje (pós Opep) pelos países árabes. Eram uns países remotos, indiferenciados e exóticos, muitos deles ainda colônias, atrasados, inexpressivos ou dominados por potências ocidentais (1962 é o ano da independência da Argélia).


Um pouco mais conhecido era o presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, que teria decisiva importância para a história dos estudos árabes no Brasil, pois atendeu ao pedido do presidente Jânio Quadros de enviar um professor de árabe para a USP e mantê-lo por oito anos até que a universidade o contratasse.


É nesse contexto que surgiram os Estudos Orientais, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, minúscula se comparada à atual FFLCH. Mesmo quem considera as dificuldades e delongas para a contratação de professores na universidade pública, ficará assombrado que a "Seção de Estudos Orientais" foi criada apenas em 1962, inicialmente instalada junto ao Curso de História.


Graças ao empenho de Nasser e Nasr, São Paulo ganhou um espaço acadêmico, de excelência, à altura de sua colônia árabe. Parece incrível que, com a importância que a cultura e a língua árabe têm para São Paulo e o Brasil, só há 50 anos - e por conta de uma história de aventuras, digna das Mil e Uma Noites - viéssemos a ter esses estudos universitários.


Lógicas das línguas
No fim dos anos 80 e começo dos 90, sob sua orientação, lançamos um ambicioso projeto editorial, que contou com colaboradores do porte de Roshdi Rashed, Miguel Cruz Hernández, Hassan Massoudy (o maior calígrafo árabe do mundo), Evanildo Bechara, Jamil Almansur Haddad, Milton Hatoum, Josef Pieper, etc.: a Revista de Estudos Árabes; a revista Collatio (em parceria com o Departamento de Estudios Árabes da Univ. Autónoma de Madrid) e dez livros da coleção Oriente e Ocidente. Nessa época, Nasr empenhou-se, com os autores deste artigo, em outra árdua missão: a criação do curso de pós-graduação em língua, literatura e cultura árabe, desde o começo muito mais fruto do sacrificado empenho nosso do que de apoios institucionais...


Precisamente sobre a língua árabe, passamos a oferecer ao mestre Nasr e ao leitor brasileiro sete (número simbólico na tradição oriental) conceitos resultantes de pesquisas sobre o sistema língua-pensamento árabe (Lohmann): a ausência do verbo "ser", a associação imediata de imagens, o pensamento confundente, o radical trilítere, as metáteses, o voltar-se para o concreto, a prevalência do passado.


É que, no sistema língua-pensamento árabe, em vez dos longos e complicados discursos ocidentais, encontramos um rápido e cortante suceder de flashes, em frases nominais, provenientes de uma imaginação fulgurante com a irresistível força da imagem concreta.


Assim, uma cena como a de abater um pássaro, seria, no limite, descrita por um ocidental nestes termos:


"Estava um pássaro a voar no céu, quando eu o vi. Ora, ao vê-lo, interessei-me por ele e, portanto, dado que dispunha de uma atiradeira, muni-me de uma pedra, mirei-o, disparei a atiradeira a fim de atingi-lo; de fato atingi-o e, portanto, ele caiu, o que me possibilitou apanhá-lo com a mão".


Proverbial
Já o árabe, tende a apresentar essa mesma cena do modo como o faz Tom Jobim em Águas de Março: "Passarinho na mão, pedra de atiradeira". Os enlaces lógicos ficam subentendidos por detrás da sucessão de imagens. E o mesmo ocorre, por exemplo, com este verso da mesma canção: "carro enguiçado, lama, lama" (em clave ocidental: "O carro enguiçou devido à avaria provocada por excesso de lama"...).


Tal associação imediata de imagens é propiciada pela ausência do verbo "ser" como verbo de ligação na língua árabe, tal como, paradoxalmente, ocorre em Águas de Março. Naturalmente, a presença constante do verbo "ser" na letra da canção não invalida o caráter oriental do pensamento (onde se empregam frases nominais e não o "é"), pois trata-se da forma fraca, descartável, desse verbo. E a orientalização chega ao extremo quando no final da canção, interpretada por Tom e Elis (Elis com riso mal contido), o verbo "ser" é suprimido e se diz, simplesmente:


Pau, pedra,   fim caminho
Resto, toco, pouco sozinho
Caco, vidro, vida, sol
Noite, morte, laço, anzol


Outros aspectos, tipicamente árabes, do poema são as formas "chuva chovendo" e "vento ventando".


Naturalmente, essa associação imediata (e a ausência do verbo "ser") faz com que o provérbio seja uma forma tipicamente expressiva do sistema árabe. E não é por acaso que em algumas de nossas formulações proverbiais imitemos o Oriente: "Tal pai, tal filho"; "Cada macaco no seu galho"; "Casa de ferreiro, espeto de pau".


Se quisermos recuperar a explicitação ocidental, diremos: Tal como é o pai, assim também costuma ser o filho. É muito conveniente para a ordem da selva que cada macaco em seu galho esteja (se para os orientais já é complicado o "ser" como verbo de ligação, imagine-se o desdobramento em "ser/estar"). Na casa do ferreiro, o espeto costuma ser de pau.


Confundente
Essa associação imediata é tanto mais forte quanto o árabe tende a evitar as abstrações e voltar-se para o concreto. Enquanto tendemos para o abstrato, o indeterminado e o substantivado, como em "A educação vem do berço", o árabe expressa a mesma ideia com imagens concretas: "Pai dele (é) alho; mãe (é) cebola: como pode ele cheirar bem?"


E enquanto nosso provérbio é: "Quem o feio ama, bonito lhe parece", o árabe diz: "O macaco aos olhos de sua mãe (é) gazela".


Nada de abstratos "a educação", "a conduta", etc. A mesma palavra para conduta (boa ou má) é o concreto aroma (rihat), para nós metáfora ("a coisa está cheirando mal em Brasília"); para o árabe, simplesmente, a mesma e única palavra.


A comunicação é mais solta por conta do pensamento confundente (Ortega), típico dos Orientes. Nossas palavras são constituídas por um bloco fixo, que só deixa espaço para desinências que indicam número, gênero (e, em línguas como o latim, caso): bonit- ou ros- são invariáveis e acrescentaremos o, os, a, as para determinar se são um ou mais meninos ou meninas bonitas; e -am se a rosa latina for um objeto direto singular (rosam) ou -arum se quisermos nos referir a uma qualidade das rosas (rosarum). Já no árabe, o que conta é o radical, em geral, trilítere, triconsonantal, que é intraflexionado, por vogais, que, além do mais, traduz seu pensamento confundente.


Distinguente
Essa forma de acesso ao real, o pensamento confundente, numa primeira aproximação concentra numa única palavra realidades distintas, mas conexas. Se distinguir, dar nomes diferentes para realidades diferentes, é uma importante função da língua "confundir" é - como já faziam notar Ortega y Gasset e Julián Marías - igualmente importante, pois:


"Não haveria como lidar intelectualmente com realidades complexas, em suas conexões, nas quais interessa ver o que há de comum e, portanto, o tipo de relações que há entre realidades que, de resto, são muito diferentes" (Marías).


Em maior ou menor grau, variando de acordo com o setor da realidade a que se aplicam, todas as línguas são "distinguentes" e todas as línguas são confundentes. Grosso modo, se as línguas ocidentais parecem tender mais para a distinção, as línguas dos Orientes convidam ao pensamento confundente.


Tome-se, por exemplo, o radical s-l-m, da palavra árabe Salam (em hebraico Shalom), usualmente traduzida por "paz". Se quisermos ser fiéis à semântica semítica, consideremos não a palavra, mas o radical triconsonantal (que é a alma da língua semita: o radical determina essencialmente o campo de significado, as vogais só fazem a determinação periférica de sentido) slm.


Paz
"Paz" é somente um dos múltiplos significados confundidos em s-l-m. Significa igualmente, por exemplo, unidade, integridade física ou moral: quando se quebra um giz, quando se sofre um ferimento, quando se estabelece uma separação ou se produzo uma peça com defeito, está se rompendo a s-l-m. Daí que o nome SaLyM, tão frequente entre os árabes, signifique "o íntegro", o que não se corrompe... Naturalmente, ninguém no Ocidente diria de um giz quebrado que ele perdeu sua "paz", associação evidente e conatural para o semita.


Confundindo os conceitos de paz, saúde (física ou espiritual) etc. é natural que a saudação mais comum no mundo árabe (para encontro ou despedida) seja precisamente: Salam! Slm indica também aceitação (de boa ou má vontade) e a atitude religiosa de acolhimento da vontade de Deus é iSLaM. A mesma palavra slm significa, ainda, integridade territorial.


Assim, de "Salomão" (SaLuMun ou SuLaiMan), Deus diz a seu pai Davi (um homem de guerras), em atenção ao nome de Salomão: "Este teu filho será um homem de shalom, pois Salomão é o seu nome" (1 Crn 22,9). E Deus, apesar da infidelidade do rei, mantém a "integridade", a "totalidade" do reino de Salumun e diz: "Não tirarei da mão de Salumun parte alguma do reino..." (I Reis 11,34).


Atento às consoantes, o árabe identificaria imediatamente a proximidade de sentidos, para tomar exemplos em português, de: "parto" e "porta", ou "Datena" e "detona"...


Se já o radical triconsonantal árabe confunde o ocidental, a situação se complica ainda mais com as metáteses. É relativamente frequente (e não casual) que metáteses, arranjos das consoantes, guardem relação de sentido entre si: Assim b-r-k (benção) não por acaso, relaciona-se com "grande", k-b-r (a benção sempre busca engrandecer) e a principal benção, "o primogênito" é b-k-r. B-x-r é a boa notícia (daí, etimologicamente, as alvíssaras); já X-r-b é beber, comemorar (daí nossas "bebidas" xarope ou sorvete). É como em português as casuais: senador / desonra, terno / tenro, podre / poder ou desorienta / desnorteia.


Passado no futuro
Há também outra estrutura surpreendente: o uso do passado para indicar futuro. A peculiar visão semita do tempo está ancorada no passado. É como se, numa visão monolítica do tempo, o presente e o futuro não tivessem autonomia em face do passado, este, sim, determinante e determinador. Essa preponderância do passado repercute na gramática. A gramática semita pode valer-se do passado para expressar o futuro, que aparece, assim, como mera resultante do passado.


O futuro é, assim, até em termos gramaticais, determinado pelo passado e por ele expresso em sentenças proverbiais, como, por exemplo: "Quem semeia ventos, colhe tempestades", que no original soa: "semeou ventos, colheu tempestades". Tal fato torna-se compreensível quando nos lembramos de alguns exemplos de uso semelhante em nossa língua, especialmente em linguagem publicitária. Como na recente campanha da Skol retornável: "Trocou, economizou" (quem trocar, economizará); ou na do Sedex "mandou, chegou" (se mandar, chegará). E quem bater, levará ("Bateu, levou").


Para o confundente árabe, a palavra taríq não significa só "caminho", mas acumula o sentido de "jeito", modo pessoal de cada um fazer as coisas. Compreensível, pois no deserto não há estradas delineadas, cada um busca fazer o seu caminho. É o que Helmi Nasr cumpriu desde que, quando jovem, assumiu sua missão no Brasil: abrir caminhos, que hoje podem ser trilhados por muitos, que talvez nem se lembrem de que a ele devem as facilidades que encontram agora prontas...


Esse passado voltado para o futuro faz parte da mediação realizada por Helmi Nasr; da milenar tradição do Egito para a frenética São Paulo, abrindo caminhos ao andar, em missão de integração, paz, união: islam, salam.



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