Há um aspecto da filosofia tupi pouco comentado, mas de notável alcance antropológico. Naturalmente, a "filosofia" tupi deve ser procurada não em tratados, mas na língua - como certa vez disse João Guimarães Rosa, referindo-se a uma tribo do Mato Grosso: "Toda língua são rastros de velho mistério". Língua, que é, afinal, instância privilegiada das descobertas filosóficas que acabam em eruditos tratados.
O tupi tem recursos incríveis para o pensamento e cabe aqui lembrar Caetano Veloso, precisamente na canção
Língua
, ironizando aquele exagero de Heidegger: "Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção; está provado que só é possível filosofar em alemão". Na singeleza e transparência do tupi, encontram-se sugestivas peculiaridades filosóficas de fazer inveja às línguas europeias: é o caso da composição com o sufixo -
guera
.
Guera, puera, quera
Ao ajuntar, a um vocábulo
x
, a terminação
-guera
(
-quera
ou
-puera
, de acordo com a eufonia), obtemos uma curiosa alteração semântica:
x-guera
é o que foi
x
, não é mais (ao menos, em sentido próprio e rigoroso), mas preserva algo daquele x que um dia foi. Assim,
anhangá
é diabo, espírito com poderes; já anhanguera é alguém que sem ser (mais) diabo, preserva algo do poder que um dia teve em plenitude. Mais do que a "diabo velho" é a esse remanescente poder diabólico que se refere a lendária proeza do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, que pôs fogo na "água" (aguardente) para intimidar os índios.
Ibirapuera
é o que resta daquilo que um dia foi mata (
Ibirá
);
Itaquera
, o mesmo para pedreira (ita é pedra); e
Piaçaguera
é porto em ruínas, que quase já não se usa mais.
A composição com
-guera
é frequente no tupi e está continuamente a nos recordar que há uma conexão entre o presente e o passado, entre o futuro e o presente; que há leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as ações têm consequências: projetam-se, deixam um rastro, um
guera.
Cutucaguera
(cicatriz), por exemplo, faz lembrar, imediatamente, que aquele sinal no corpo é o que ficou como resíduo de uma espetada (
cutuc
é ferir com ponta);
capuera
, roça abandonada;
tapuera
(taba-puera), os escombros que lembram que aquilo um dia foi
taba
.
Traço
Nem sempre
guera
indica decomposição ou corrupção, como até aqui indicam os exemplos; pode-se deixar de ser o que foi, preservando algo, em outro estado, transformado: por exemplo
ypuera
é suco de fruta;
manipuera
, suco de mandioca.
O português não distingue a carne integrada no vivente, da que se vende no açougue; nem a pele do animal vivo da que está na bolsa ou artefato. Porém, para a sensibilidade em face da natureza, que há no tupi, soó é a carne viva do animal, mas a que está na panela ou churrasqueira é soóquera; a pele, no corpo do animal vivo, é pi; uma vez extraída, porém, é
pipera
. E peruca é
abaguera
(aba é cabelo vivo); enquanto de
canga
(osso), forma-se canguera, ossada, esqueleto de animal; e
pepocoera
é a pena (
pepó
) arrancada do pássaro.
Interessante é observar que
guera
não se aplica só a realidades físicas (como aquelas com que, até aqui, temos exemplificado), mas também à realidade propriamente humana e até moral. Assim,
mbaé
tem o sentido amplo de coisa; já
mbaépuera
é somente intriga, fofoca, mexerico...
Nheen
é falar, a fala viva da voz - forma originária de toda comunicação -; a nota escrita,
nheenguera
, é o recado, o escrito.
A articulação tupi
x-guera
, dizíamos, pode ser de grande alcance antropológico. A ética clássica ocidental apoia-se na constatação de que o ato humano não se esgota no momento em que a ação foi praticada; deixa marcas, projeta-se. Como diz Gabriel Perissé: "O passado é aquilo que não passou. É aquilo que ficou em forma de experiência, de conhecimento, de conselho, de consciência e de capacidade de análise".
Ficou, criando na alma, por exemplo, uma predisposição (um
guera
) para o vício ou para a virtude. Precisamente este é um dos sentidos de guera: o hábito, a disposição para praticar novos atos no sentido dos anteriores. Assim, o viciado em aguardente (
kauim
) é
kauguera
; o metido a falar é
juruguera
(
juru
é boca); o risonho, propenso a rir é
pukaguera
etc. (F. Edelweiss.
Estudos Tupis e Guaranis
. Rio, Brasiliana, 1969: 258-259).
O passado permanece no presente, e é, como escreveu o contista angolano José Eduardo Agualusa, "como o mar: nunca sossega". O
bullying
que a criança sofre hoje pode deixar uma marca para o resto da vida; um trauma qualquer pode custar anos de terapia.
Livrai-nos
A propósito, lembro aquela oração que se reza na missa, logo após o Pai-Nosso: "Livrai-nos, Senhor, de todos os males...", e que durante muitos séculos, e até 1970, prosseguia de modo muito sugestivo: "...de todos os males
passados
, presentes e futuros...". A reforma litúrgica do Vaticano II houve por bem suprimir esse trecho ("passados, presentes e futuros"), alegando que o povo não entenderia a formulação "livrar dos males passados", desprovida de sentido. E foi uma pena porque ela indica um profundo fato ontológico e psicológico. É certo que nem Deus pode mudar o passado, nem extinguir os males passados... mas Deus pode, sim, em Sua misericórdia, fazer com que aqueles males passados não continuem se projetando no presente e no futuro, como observa o filósofo Julián Marías a respeito dessa ideia latente na oração suprimida.
O sufixo guera - como todos os recursos vivos da língua - não é apenas uma possibilidade de
expressar
o pensamento; ele amplia a própria possibilidade de pensar e a sensibilidade perceptiva da realidade; no caso, a continuidade projetiva do passado.
Jean Lauand
é professor titular da Faculdade de Educação da USP