Filosofia
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Julho/2014


Filosofia

Você está servido?

Para entender a campanha surda contra uma singela expressão que perdeu sua motivação de origem

Por Jean Lauand

Há uma dinâmica própria da linguagem comum: ela vai incorporando expressões novas que passam a integrar o falar cotidiano de milhões de usuários mas, com o passar do tempo e das gerações, a metáfora ou a expressão permanecem, embora seu fato-base seja esquecido ou tenha se tornado obsoleto.

Nenhum de nós viu carruagens nas ruas e perdemos a experiência de que é "pelo andar da carruagem" que se sabe da nobreza de quem vai lá dentro; não sabemos o que são bugalhos para confundi-los com alhos; as novas gerações nunca viram vacas sendo ordenhadas, mas continuamos dizendo que o técnico do time está "escondendo o leite"; e, embora ausentes de nossas vivências, ainda mandamos insultuosamente alguém ir plantar batatas ou catar coquinho. Etc.

Perdido o referencial de realidade inicial, a expressão pode se tornar incompreensível e se prestar a outros significados. Nas yahoo questions, para a pergunta "O que significa dizer: 'O castigo vem a cavalo?'" encontramos, entre as respostas, bizarrices como: "O castigo virá rápido, devastando, e derrubando e pisando em tudo!"; "O castigo nunca vem desacompanhado. Mesmo depois de recebermos o castigo ainda continuamos sofrendo com as suas sequelas". E é compreensível: não nos passa pela cabeça, hoje, que o cavalo seja o meio mais veloz de trazer o castigo...

O mesmo parece ter ocorrido com uma expressão antiga e que hoje gera perplexidade, pois seu sentido original, arcaico, tornou-se ininteligível: "Você está servido?".

Internet
Ainda no yahoo answers - onde a pergunta sobre o significado de "estar servido" foi lançada há mais de sete anos -, nas diversas tentativas de resposta só encontramos disparates e desconversação.

Também não atinando com o sentido original da expressão (de fato, invisível para o falante de hoje), um site de referência, o Uol-Vestibular, propõe agressivamente a abolição da expressão, em sua seção "Dúvidas de português (/construções sintáticas)". Vale a pena transcrever o verbete:

"'Este sanduíche está delicioso. Você está servido?'

Quem oferece assim para os outros é desumano, maldoso demais! Não entendeu coisa alguma, não é mesmo? Vamos à teoria. O verbo 'servir' é transitivo direto e indireto, pois quem serve, serve algo a alguém. A gramática padrão diz que apenas verbo transitivo direto admite a voz passiva - aquela que tem o sujeito sofrendo a ação verbal. Portanto, se usarmos o verbo 'servir', apenas a parte transitiva direta poderá ser passada para a voz passiva:

"Ela serviu um sanduíche / Um sanduíche foi servido por ela."
A parte transitiva indireta não admite a voz passiva:
"Ela serviu ao amigo".

Não poderemos dizer "O amigo foi servido por ela" nem "O amigo está servido por ela".

Sem acesso
A frase inteira será "Ela serviu um sanduíche ao amigo" - a voz passiva correspondente será "Um sanduíche foi servido por ela ao amigo". A pergunta apresentada, então, para se adequar ao padrão culto da língua, deveria ser estruturada de outro modo:

"Este sanduíche está delicioso. Você quer experimentá-lo?" 

Igualmente, outro portal de educação, o Brasil Escola, também investe pesadamente contra o uso daquela expressão, "incorreta e deselegante". 

Na verdade, por não termos mais acesso ao significado originário de "está servido?", buscamos enquadrá-la à força em padrões de linguagem atuais e aí ocorre algo parecido com o que se faz com letras de canções que cantamos errado, buscando uma releitura com sentido mais familiar: "Trocando de bikini sem parar" conta com 38.300 incidências na busca do Google (em 7-4-14) superando os 25.500 do verso original de Noite do Prazer, de Claudio Zoli ("Tocando B. B. King sem parar"). E "É você que é mal passado e que não vê" apresenta 16.500 sites no Google contra 23.600 do original de Como nossos Pais, de Belchior: "É você que ama o passado e que não vê". Nessa linha, nos últimos anos tenho recebido e-mails de inscrição para seminários acadêmicos, dizendo: "Gostaria de me escrever para o evento" e - vale conferir neste ano de eleição - até repórteres de TV confundem "colégio eleitoral" com a escola em que se vota.

Desde a infância, intrigava-me a pergunta, mas sobretudo a resposta a "Você está servido?". Acabo de chegar, entro e as pessoas que estou visitando estão à mesa comendo uma pizza. A dona da casa, gentilmente, diz:

"Que surpresa, você por aqui? Puxa uma cadeira, a calabresa está uma delícia. Você está servido?"

Origem
Dentro da "lógica" da semântica atual, a pergunta não tem o menor sentido: é claro que não estou servido, não sentei, nem tenho prato... como poderia estar servido? Mesmo assim, minha recusa deve assumir a forma:

"Não, obrigado!".

Na verdade, é desse erro de interpretação que derivam todas as perplexidades com relação à expressão. E é que "servido", "servir", no caso, não diz respeito às pizzas que se servem, mas à antiga expressão, que se refere à pessoa, "ser servido" (ou "estar servido").

O dicionário da Academia Espanhola registra "ser uno servido - Querer o gustar de una cosa conformándose con la súplica o pretensión que se hace." Assim, "é servido" ou "estar servido" significa simplesmente a pessoa querer, aceitar, "estar de acordo" e não se refere à comida que se pretenderia "servir" a ele nem se lhe foi "servido" algum bocado.

Nesse sentido, a fórmula "ser servido" ainda se usa em Portugal: uma blogueira ostenta um tentador chocolate em seu site, sob a pergunta: "Alguém é servido?". E uma interlocutora responde: "Sou [sou servida, aceito], embora não seja fã de chocolate." 

Assim, encontramos, antigamente, ordens do rei precedidas de "Sou servido ordenar...", "Sua Majestade é servida...", "O Rei é servido..." etc. que significam que é vontade do rei tal coisa que se decreta.  

Casos
Outros exemplos. Nos Acuerdos del Cabildo de Tenerife (de 1/4/1513) se diz: "Valdés dijo lo mismo que Oallinato porque su Alteza está servida en le hacer saber todo lo pasado en este caso".

Nas Moradas de Santa Teresa: "cuando nuestro Señor es servido de regalar más a esta alma, muéstrale claramente su sacratísima Humanidad de la manera que quiere". E no conto "As festas de Nazaré", de Júlio César Machado, autor português do século 19, quando o personagem pede um cavalo com tais e tais características, a velha responde:

"Está o senhor servido! Oh! Está o senhor servido!".

Ou seja: tenho exatamente o animal que o senhor deseja.

Tendo desaparecido o uso original de "estar/ser servido" e limitando-se, hoje no Brasil, à fórmula educada de oferecer comida, a expressão torna-se problemática e indigesta para ser servida.



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