Bem-haja!
Há dias, num comercial da cidade, ouvi alguém agradecer com um acentuado bem-haja,
acrescentando bem alto, como que para dar um recado a todos os presentes: como é da tradição no bem linguajar da Guarda.
Ouvi, achei graça, concordei, até porque seria a expressão e agradecimento mais utilizada na minha aldeia nos meus tempos de criança, e fiquei intimamente grato pela observação, pois logo me ocorreram outras formas de agradecimento que fui ouvindo desde menino, incluindo o Deus lhe pague que raramente já é ouvido. Mas imediatamente a seguir…
Atendido eu também, agradeci, distraidamente, com um muito obrigado, mas logo, do balcão, me agradeceram com um bem-haja. Confundido e até um tanto envergonhado, voltei a agradecer corrigindo-me: bem haja, meu caro, pela atenção dispensada. O bem-haja da Guarda ficou-me a bailar no espírito e saí a pensar na insistência do Papa Francisco com que recomenda a cultura da gratidão.
Todos teremos vivências que vão ficando gravadas com maior intensidade no nosso espírito. Foi nos finais da década de setenta do século passado que eu ouvi citar pela primeira vez um texto sobre os três graus da gratidão referidos por São Tomás de Aquino na Summa Theológica. Foi numa intervenção académica do Professor Paulo Durão no Salão Nobre da Biblioteca da Faculdade de Filosofia em Braga, quando aquele distinto professor de ética realçava a riqueza vocabular da língua portuguesa para expressar a gratidão. Depois de citar, em latim, as palavras de São Tomás, fazia notar que, tanto quanto ele soubesse - acrescentava com a sua habitual humildade –, só a língua portuguesa possuía a palavra que corresponderia ao terceiro grau da gratidão referidos por São Tomás: a palavra «obrigado». No final da sessão fui cumprimentá-lo e solicitar-lhe a indicação da parte da Summa tomista em que poderia inteirar-me do enquadramento da citação feita. Acedeu com toda a amabilidade, como sempre, e, na primeira oportunidade, embrenhei-me nas questões 106 e 107 do capítulo II da II parte daquela monumental obra tomista. É ali, designadamente no Art.º 2 da questão 107, ao interrogar-se «Se a ingratidão é um pecado especial», que São Tomás de Aquino, inspirando-se em Séneca, refere os três graus da gratidão e os correspondentes graus de ingratidão.
Num artigo do professor Jean Lauand, da Universidade de S. Paulo, com o título «Antropologia e Formas quotidianas – A Filosofia de S. Tomás de Aquino Subjacente à nossa Linguagem do Dia-a-Dia» de 1998, depois de citar o mesmo texto tomista que Paulo Durão, escreve: «No amplo quadro que expusemos – o das expressões de gratidão em inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, latim e árabe – ressalta o carácter profundíssimo da nossa forma “obrigado”. A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situar-se, claramente, naquele mais profundo nível de gratidão de que fala Tomás, o terceiro, (que, naturalmente, engloba os dois anteriores): o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir.»
Parece-me que valerá a pena deixar aqui, no latim singelo do santo doutor, o extracto citado por Paulo Durão e Jean Lauand. «Habet tamen diversos gradus, …. In qua primum est quod homo beneficium acceptum recognoscat; secundum est quod laudet et gratias agat; tertium est quod retribuat, pro loco et tempore, secundum suam facultatem.» Sendo o português uma língua filha do latim, o texto de Tomás de Aquino é bem fácil de entender. Mas, como a língua latina foi expulsa da escola e como o recente (des)acordo ortográfico foi mais um rude passo no parricídio cultural linguístico, traduzirei: a gratidão «Possui diversos graus, … O primeiro grau consiste em reconhecer o benefício recebido, o segundo em louvar e dar graças e o terceiro consiste em retribuir conforme as circunstâncias do lugar e do tempo e as reais possibilidades.» Enfim, dito de modo sintético: a gratidão é reconhecimento, é louvor e acção de graças e, no grau mais elevado, é retribuição.
A este propósito ocorrem-me as expressões idiomáticas: Dever obrigações a alguém (ter dívidas de gratidão para com alguém); receber obrigações de alguém (beneficiar de favores, ajudas prestadas por uma pessoa) ou pôr alguém na obrigação de… (colocar alguém em situação de se sentir no dever de fazer alguma coisa). Ou ainda a exclamação irónica ora, muito obrigado! de quem recebe uma proposta disparatada, uma ideia sem qualquer valia, uma sugestão ridícula ou uma explicação óbvia.
E assim regresso ao quiosque do jornal onde esta crónica começou. O professor da Universidade de São Paulo, ignora o nosso bem-haja. O seu texto limita-se ao obrigado. Numa curtíssima nota de três linhas, ainda refere a expressão Deus lhe pague que todos conhecemos, embora vamos sentindo que, infelizmente, vai caindo em desuso.
Obrigado, bem haja, Deus lhe pague, três expressões da língua viva do povo português para a gratidão, «uma flor que nasce em almas nobres», nas palavras do Papa Francisco. Qualquer delas, creio bem, se situa no nível mais elevado da gratidão: o nível da retribuição, da obrigação ou dever de retribuir, pese embora o facto de as utilizarmos mecanicamente. Valeria a pena aprofundar melhor o seu sentido, mesmo que, para tal, se recorresse a São Tomás de Aquino. Mas isso, para não se alongar este texto em demasia, ficará para uma próxima crónica.
Entretanto, um substantivo bem-haja a quantos contribuíram para a redacção destas linhas: São Tomás de Aquino, os académicos citados, os intervenientes na conversa com que iniciei a crónica. Bem haja a si, que tem os olhos nestas letras; bem hajam todos quantos me ensinaram a ler o grande livro do mundo e da vida; bem hajais vós todos, pacientes leitores, que tivestes a coragem de chegar ao fim destas mal alinhadas palavras.
Guarda, 1 de Outubro de 2018